O nosso riso
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12 de setembro de 2017
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É comum a abordagem sobre direitos humanos se dar a partir de temas duros, que falem de dor, opressão e violência. Habituamo-nos a ler sobre mortes, estupros, trabalho escravo, conflitos de terra e outras tantas manifestações de truculência. Realidades que estampam páginas de jornais e noticiários de TV como episódios dispersos e que, quando muito, dão conta de mostrar a ponta de um enorme iceberg formado por violências físicas, verbais, psicológicas e simbólicas diuturnas, que permanecem submersas na aparente banalidade do cotidiano. Acostumamo-nos a enxergar a violência apenas quando ela é noticiada como violência e, por equívoco ou por miopia, interpretamos essa parte que fica invisível como banal.

Atravessada por esse sentimento de invisibilidade que alcança a existência de grupos inteiros em uma sociedade excludente e desigual que naturalizou a opressão e que tem assistido atônita ao crescimento do fascismo e das ideias de ultradireita, motivou-me refletir sobre um dos mais ordinários acontecimentos: o riso. Esse que de tão corrente e comum pode estar mais próximo de um “desacontecimento”, que como tal não rende nota ou chama qualquer atenção. O riso nos ajuda a extravasar emoções e a diminuir a dureza dos dias. Já se imaginou dias inteiros sem sorrir? Sem dar uma gargalhada sequer? Triste, não é?! Mas, e se a tua existência for a motivação da zombaria ou da chacota?

No documentário brasileiro “O riso dos outros”, Pedro Arantes problematiza de maneira exemplar os limites do humor. Afinal, tudo é humor? O humor tem que ser cruel ou violento? Não há formas de fazer rir sem humilhar? Liberdade de expressão é também a liberdade de violência? Embora o enfoque do filme esteja na profissão do humorista, as situações que ele descreve podem ser cotidianamente ouvidas nos locais de trabalho (a sala do cafezinho parece ter sido feita para isso), nos círculos familiares ou nas rodas de amigos. Piadas que naturalizam a violência contra a mulher, que abordam o estupro com comicidade, que exibem orgulhosas o racismo, o machismo e a LGBTfobia, que menosprezam pessoas com deficiência, gordas ou pobres, que escracham com a diferença, hierarquizando as existências e tornando-as inferioridade.

Pedro Arantes foi cuidadoso em abordar os diferentes pontos de vista acerca do discurso humorístico. Nas diversas entrevistas que aparecem no filme, há quem defenda o ataque às minorias políticas como regra do humor, sua legitimidade em nome da promoção do riso, e reclame a existência de uma “ditadura do politicamente correto” que cercearia a liberdade de expressão. Os partidários dessa opinião (vários deles já processados judicialmente), comercializam shows ou protagonizam programas de TV que são verdadeiras odes à discriminação e ao preconceito.

Em outra trincheira do riso, entrevistados se posicionaram sobre a pequenez de se lançar mão da agressão a mulheres, negros e gays no exercício de fazer rir. Para eles e elas, as piadas preconceituosas são um tipo de humor preguiçoso, que não requer qualquer elaboração, pois se ancoram em preconceitos solidificados na sociedade e não fazem mais do que reforçá-los. Afirmam que é perfeitamente possível retratar segmentos ou grupos nas piadas sem promover a humilhação deles e defendem que qualquer voz que se levanta em questionamento às práticas discriminatórias é chamada de censura ou patrulhamento.

Ouvidos os argumentos, pensemos: em nome da liberdade humorística devemos desconsiderar os limites da dignidade humana? Toda piada é válida? Tudo é humor? A liberdade de expressão pressupõe inclusive a incitação à violência? Chamar uma pessoa negra de macaco, sugerir que é um favor uma “mulher feia” ser estuprada ou ridicularizar LGBTs é piada? A ditadura do politicamente correto existe? O que podemos inferir sobre uma sociedade que se regozija com o menosprezo ao outro?

É curioso, e o documentário escancara isso, como o discurso da patrulha e da censura é empregado para defender um único ponto de vista. Advoga-se pela liberdade irrestrita para falar o que se quer, mas espera-se que os grupos historicamente excluídos e vilipendiados aceitem calados e passivamente. Estes, pois, parecem não gozar da mesma liberdade de expressão. Não menos curioso é a inversão que se tenta criar com o discurso do politicamente correto que aparece travestido de uma aparente visão libertária, que alça as vozes contrárias à condição de careta, mas que é na verdade o caduco discurso da moral e dos bons costumes em busca da manutenção do status quo.

Reivindicar como “opressão linguística” o fato de não poder chamar um negro de macaco é que deveria nos soar como piada, afinal, esse tipo de humor sempre existiu, e o que mudou foi o empoderamento, a organização e a conquista de direitos pelos segmentos alvos da discriminação e do preconceito. Tais conquistas serem consideradas uma nova ditadura ou uma nova ortodoxia é apenas uma maneira de negá-las disfarçadamente.

O fato é que são recorrentes as tentativas de relativização dos temas de direitos humanos. Vivemos em uma sociedade em que até te permitem ser gay, desde que não seja “afeminado” ou queira demonstrar seu amor em público; que te deixa ser mulher contanto que não seja lésbica, trans ou “piranha”; que é capaz de consentir a convivência com negros/as, desde que não estejam nos bancos de universidade ou usando jalecos e estetoscópios. Essa hipocrisia coletiva quer livre direito para se expressar sem embaraços.

Relativiza-se os direitos humanos a partir do humor, da cultura, da falsa insígnia da liberdade de expressão. Esse relativismo ou afrouxamento precisa ser problematizado pois os direitos humanos estão assentados em princípios de igualdade de direitos e de reconhecimento dos seres humanos; da não violência e da valorização da diversidade como constitutiva da humanidade. Assim, o sofrimento humano é um patamar que precisa ser respeitado. Negociar com isso tem contribuído para conformação de horizontes cada vez mais estreitos de proteção da vida, da dignidade e do reconhecimento do outro como parte da humanidade.

Hoje, o patamar máximo que almejamos alcançar enquanto seres humanos parece ser o da tolerância. Mas o que é tolerar? Tolerar significa aceitar; suportar com resignação; permitir. A tolerância é, pois, uma relação de superioridade e não de igualdade. Para tolerar você não necessariamente valoriza ou reconhece aquela diferença, mas é capaz de aguentar, transigir, consentir. É como se você desse o direito ao outro de existir sem ser importunado.

A tolerância como utopia é muito pouco para o horizonte dos direitos humanos. É preciso que busquemos mais do que tolerarmos uns aos outros. Devemos perseguir uma sociedade em que as pessoas se movam pela consideração e pelo respeito mútuo, em que a diferença seja valorizada, reconhecida e afirmada enquanto riqueza e diversidade. Como nos disse Saramago, “A intolerância é péssima, mas a tolerância não é tão boa quanto parece. Deveríamos criar uma relação entre as pessoas da qual estivessem excluídas a tolerância e a intolerância. ”

Em um mundo cada vez mais intolerante (e não nos faltam fatos históricos recentes que comprovem isso), para cada morte de lésbicas, gays, bissexuais, transexuais e travestis que vemos noticiada - e somos o país que lidera este abominável ranking de assassinatos - há outras tantas pessoas que foram proibidas de usar seu nome social, que apanharam, que foram escorraçadas de ambientes públicos e privados, impedidas de doar sangue, levadas a tratamento para curar sua homossexualidade, discriminadas em seu ambiente escolar ou de trabalho. Na fina poeira dos dias, as gargalhadas que se dobram ao dito “humor livre”, ecoam o grito silenciado de gigantescas dores do mundo.

Sei que é comum a abordagem sobre direitos humanos se dar a partir de temas duros, que falem de dor, opressão e violência. Por isso escolhi falar sobre o riso. De que é feito o nosso riso?

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