O passado é uma roupa que não nos serve mais
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O passado é uma roupa que não nos serve mais

26 de setembro de 2017
O passado é uma roupa que não nos serve mais

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Alguns temas se impõem na agenda pública como um retrovisor, cujas lentes revelam um passado que ficou logo atrás, ainda em nosso campo de visão. Acontecimentos que desafiam a máxima Leninista de que é preciso dar um passo atrás para dar dois adiante, numa marcha à ré que parece não ter fim e que nos provoca uma sensação constante de dèjá vu.

Parece que dormimos no século XXI e acordamos na Idade Média. E essa sensação não é de todo uma alegoria. Enquanto avançávamos na garantia de direitos e no reconhecimento a segmentos marginalizados, um caldo de cultura ultraconservador foi se formando na sociedade, ao ponto de termos hoje um ambiente social e institucional de consenso reacionário e neoliberal com crescente fascismo.

O fundamentalismo religioso se organizou politicamente enquanto projeto de poder, inclusive com estrutura econômico-financeira. São donos de meios de comunicação, donos de comunidades terapêuticas, gozam de imunidade de pagamento de impostos que os desobriga de qualquer tributo, como por exemplo o IPTU, e elegem bancadas cada vez maiores de parlamentares empenhados na retirada de direitos especialmente das mulheres e da população LGBT.

Essa ofensiva atinge os três poderes. Em um curto espaço de tempo, vimos a retirada de todas as menções a “identidade de gênero’ e “orientação sexual” da Base Nacional Comum Curricular; a famigerada escola sem partido; projetos de veto ao aborto até para os casos que hoje são permitidos por lei. Vimos juízes decidindo favoravelmente à possibilidade de “tratamento voluntário de homossexuais”; concebendo que espancar e cortar os cabelos de uma adolescente que perdera a virgindade é uma “medida corretiva” legítima por parte do pai; proibindo a exibição de uma peça teatral que retrata Jesus Cristo como uma mulher transgênero nos dias atuais.

A tentativa de reeditar a patologização da homossexualidade é mais um elemento (grave) dessa investida. Há 30 anos a Organização Mundial de Saúde reconhece que a homossexualidade não é doença e, no Brasil, desde 1999 o Conselho Federal de Psicologia (CFP) proíbe o dito tratamento de reversão sexual ou cura gay, como foi popularizado. Uma interpretação errônea tenta ser disseminada de que a Resolução do CFP impediria profissionais da Psicologia de atenderem pessoas em sofrimento por orientação sexual. A Resolução, ao contrário, é embasada por uma diretriz ética de reconhecer como legítimas as orientações sexuais não heteronormativas, sem as criminalizar ou patologizar, protegendo LGBTs de práticas de tortura e charlatanismo.

A sentença do Juiz Federal Waldemar Cláudio de Carvalho não visa possibilitar a atenção em saúde mental a LGBTs que estejam em situação de sofrimento psíquico, a sentença é a própria geradora do sofrimento, do sentimento de inadequação, de não aceitação social. Com toda certeza há LGBTs que sofrem, mas o sofrimento não vem da orientação sexual, e sim da discriminação e da violência. O que não parece normal é termos que dizer o óbvio: o que causa dor e sofrimento não é a homossexualidade, mas a homofobia.

As possibilidades de ser e existir no mundo estão cada vez mais tolhidas. A patologização da vida é, sobretudo, seu controle e contenção. Uma sociedade doente é uma sociedade passiva e cada vez mais nos vemos as voltas com pílulas receitadas em larga escala para que possamos suportar apaticamente esse mundo cão. A “normalidade” de qualquer um de nós não resiste a uma passada de olhos no DSM V, o Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais, também conhecido como a bíblia da psiquiatria. São mais de trezentas patologias, sendo difícil achar um comportamento ou sentimento humano que não esteja catalogado como transtorno.

Um número cada vez maior de comportamentos, ações e sentimentos são classificados, descritos e diagnosticados como transtornos mentais. Tudo está ali: transtornos de humor, de ansiedade, somatoformes, factícios, dissociativos, sexuais, do sono, da alimentação... a cada nova versão, mais enquadramentos. O que decide se estamos doentes ou não é basicamente a intensidade e a duração. Para tudo há um padrão. Renomados especialistas determinaram, por exemplo, o prazo razoável para o luto e que tempo temos para sentirmo-nos tristes sem estarmos em depressão.

Afinal, o projeto de poder que está em curso requer sujeitos acríticos, pasteurizados, produtivos e competitivos, que não atrapalhem o fluxo de acumulação crescente do capital. Não há espaço para desrazão. Quanto mais ajustado, domesticado, homogeneizado pudermos ser (ou parecer), mais saudável seremos considerados. Nada muito, tudo dosado. Alegria demais é histeria; tristeza muita, melancolia; questionamento é “transtorno desafiador opositivo”, que se caracteriza pela desobediência e hostilidade para com figuras de autoridade.

Não à toa, aqui e no mundo a indústria farmacêutica só perde em faturamento para a indústria bélica. Estamos criando gerações que lidam quimicamente com a vida, o sofrimento e a dor. Em uma sociedade racista, misógina, LGBTfóbica, extremamente violenta, desigual e excludente, é esperado que as pessoas adoeçam. Quem se diz preocupado com a saúde mental e o sofrimento psíquico da população deve saber que nada gera mais dor do que o estado de coisas vigente. A superexploração, os subsalários, a crescente precarização das relações de trabalho e a exclusão, promovidas pelo avanço neoliberal, juntamente à violência, à opressão, a hipocrisia da moral e dos bons costumes, produzidas pelo crescente conservadorismo.

A terapia da reversão sexual consiste em abusos físicos e psicológicos com vistas a mudar uma orientação sexual (curiosamente sempre da homo para heterossexualidade). Os relatos de quem já viveu são de tortura, eletrochoques, terapias comportamentais, hipnose, tratamento hormonal, indução de vômito concomitante à exibição de filmes pornô gays. Uma série de arbitrariedades que nada têm de científicas e que provocam danos incalculáveis a vida das pessoas que a elas são submetidas.

É comum familiares encaminharem filhos e filhas para acompanhamento psicológico. A ideia de que a homossexualidade possa ser uma fase, a manifestação de uma rebeldia, confusão de adolescente. A culpa gerada pela decepção causada à família, a violência sofrida dentro e fora de casa, fazem com que a população LGBT sofra conflitos psíquicos. O que não é possível é que as políticas de saúde sejam guiadas por dogmas religiosos.

É preciso haver duas mortes para o fim de uma ideia. O acontecimento trágico e sua absurda repetição. A homossexualidade enquanto doença morreu uma vez, quando a Organização Mundial de Saúde a retirou da Classificação Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde, mas sobrevive ainda enquanto farsa, sustentada em uma pauta moralista que avança a passos largos com o golpe, barganhando com a vida da população LGBT para se manter no poder.

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