Mártires
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2 de outubro de 2017
Mártires

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Vivemos dias de santidade, com incensos depurando a maresia da província. Os crentes estão em alvoroço pela canonização iminente de 30 moradores de Cunhaú e Uruaçu que enfrentaram espadas e mosquetes flamengos sem renegar a confissão católica. É uma história inspiradora sobre fé e coragem no século XVII, com pelo menos uma aplicação prática já encomendada: fomentar o turismo religioso, com visitas aos sítios dos massacres e aos templos consagrados aos mártires.

Seria o primeiro milagre dos novos santos, que foram alçados aos nichos não por obrarem algum, mas por abraçarem a morte em nome da crença. Ignoro a razão para a igreja preferir esse tipo de santo, embora compreenda que, na hierarquia das motivações, o martírio seja tão (ou até mais) elevado espiritualmente quanto o milagre. Mas sei que a escolha não me parece boa para os devotos.

A eles seria mais vantajoso se a igreja houvesse canonizado o padre João Maria ou os bandidos Jararaca e Baracho, que gozam de boa reputação como intercessores pelos potiguaras em busca de graças sobrenaturais. Mas, coitados, a causa dos três é defendida apenas pela devoção popular, que deposita em seus túmulos fiapos de esperança e outras bugigangas sem valor de troca no balcão da fé. Falta-lhes o fundamental: a unção de um príncipe, a auréola oficial.

Não creio que a falta do selo de santidade diminua o prestígio do trio com os caçadores de milagres. Quem os procura já é, ao seu modo, um mártir, curtido na sofrência de ser regido por semideuses cujo poder é piorar as vidas que tocam. E, em função disso, preferirá a expectativa incerta do milagre à certeza de comprar pelo sofrimento uma patente de santo.

Nem o ateu mais renitente duvidará de que precisamos mais de pessoas do que de celebridades religiosas, de humanismo do que de transcendência, de milagres do que de martírios. Ainda que seja apenas o milagre banal de escolher bem o próximo altar ao qual elevar nossos desejos, como preces ou como insultos, nos negócios com os deuses ou com os pobres de espírito iguais a nós.

Pois se o que está no alto não consegue maravilhar, deixemos que nossas almas tão prosaicas cuidem de acertar as contas com o paraíso aqui mesmo, no círculo mundano em que cada um é o seu santo e faz os próprios milagres.

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