500 anos depois da Reforma, Lutero se revira no túmulo
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500 anos depois da Reforma, Lutero se revira no túmulo

2 de novembro de 2017
500 anos depois da Reforma, Lutero se revira no túmulo

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No último 31 de outubro, o mundo comemorou os quinhentos anos da Reforma Protestante. Desde o próprio pressuposto explícito no título, a emergência da possibilidade de protestos, e portanto de contestação em uma sociedade, à época ,estamental e rigidamente controlada, até a contestação doutrinária e propriamente teológica feita pelas 95 teses de Lutero, trata-se sem dúvida, de um dos eventos mais importantes da história ocidental, ou mesmo global. Não por acaso, junto com outros grandes marcos da passagem do século XV para o XVI – o renascimento intelectual e artístico, os grandes descobrimentos marítimos, a queda de Constantinopla em poder dos turcos, a centralização das monarquias europeias) constituem o que chamamos na divisão clássica da história, a Idade Moderna.

De fato, um dos maiores sintomas dessa Modernidade que então se anunciava, era a possibilidade de questionamento das visões de mundo consolidadas até aquele momento. Não por acaso, são desse período, as maiores contestações até então sofridas pelo teocentrismo (visão de mundo que coloca Deus no centro de tudo) e pelo geocentrismo (visão de que o planeta Terra seria o centro do universo). O heliocentrismo de Copérnico, Galileu, Braher e Kepler e seu consequente antropocentrismo que levou tantos menos famosos que Giordano Bruno para a fogueira da Inquisição, nos são mais do que indicativo de que vivia-se, naquela época, um tempo de iminentes e profundas mudanças: a ordem social medieval-católica, base da civilização europeia por mil anos, sofria um golpe severo do qual jamais se recomporia totalmente. Levando ao surgimento de uma nova ordem espiritual e também existencial no Ocidente. Ao monopólio das verdades exercido pela Igreja Católica no Medievo, se opunha, cada vez mais, as inúmeras contestações que lhe imputavam a nascente modernidade.

A Reforma Protestante foi, sem dúvida, o mais importante movimento de contestação de ideias da história ocidental. Graças a ela, hoje vivemos num mundo de pluralidade ideológica, política, intelectual. Sem a ruptura de monopólio de verdade perpetrada pela contestação luterana, é impossível imaginar por quanto mais tempo se manteria o império da intolerância com a divergência que caracterizou e caracteriza, em certa medida até hoje , o cristianismo.

A Reforma Protestante teve a ver com coisas muito viscerais relativamente à vida das pessoas, a saber: seu direito de escolha, de orientação, e por que não dizer, de livre arbítrio, para recuperar um conceito tão caro ao cristianismo visto que, o que os cristãos medievais menos tinham, era o livre arbítrio de escolher desde seu trabalho, suas ligações afetivas e matrimoniais, suas crenças. Todos os aspectos de sua existência eram vigiados pelo binômio Igreja-Senhor Feudal, de modo que hoje sabemos que o camponês medieval, em média durante toda sua vida, não percorria mais que dez km quadrados do entorno donde vivia, eram quase 100% iletrados, tendo que aceitar, por conseguinte, que os detentores do conhecimento, o Clero, definissem os valores em que acreditavam e as formas que tinham de viver.

Ao recuperar o conceito de livre arbítrio, ao anular a necessidade de mediação sacerdotal na relação entre os humanos e o sagrado, Lutero abria precedentes libertadores do espírito humano que, possivelmente, ele mesmo não conhecesse toda a potência. O fato é que as condições específicas do começo do século XVI, da passagem de um tempo (o medieval) para outro (o “moderno”), permitiram que aquilo que já havia sido antes tentado, agora finalmente lograsse êxito: uma critica radical sobre os pressupostos litúrgicos e doutrinários bem como das práticas e condutas sacerdotais do catolicismo. Antes de Lutero outros, alguns mais conhecidos outros menos, haviam questionado a organização estrutural e ideológica da Igreja Católica. John Wicliffe na Inglaterra e John Huss na Bohemia (atual República Tcheca), no século XIV são considerados precursores da Reforma uma vez que suas ideias já punham em xeque inúmeras práticas que depois haveriam de ser também parte do cerne da crítica luterana. Ambos caíram em desgraça, perseguidos, censurados, silenciados por ousarem protestar, por ousarem divergir da regra. Durante todo o período feudal, dentro da própria Igreja, inúmeras contestações foram feitas, evidenciadas, e na maioria das vezes, perseguidas e silenciadas, exemplo disso são as inúmeras ordens religiosas católicas caídas em desgraça e renegadas pelo Vaticano e suprimidas da história do catolicismo, do qual o famoso episódio da destruição da Ordem dos Templários em 1312 é apenas o mais espetacular exemplo.

Mais sorte teve Lutero, de viver num tempo e num lugar cuja particular conjunção de fatores permitiu que sua contestação, seu protesto, não fossem silenciados como o foram seus predecessores. Graças às disputas políticas internas que grassavam no então Sacro Império Romano-Germânico, pôde Lutero se equilibrar entre os interesses dos muitos príncipes e reis que naquele momento endossavam suas críticas ao Papado (seja por razões ideológicas ou materiais, ou mesmo por ambas – uma vez que parte da crítica de Lutero à Igreja se dava pela condição de grande proprietária de terras que caracterizava a Cúria Romana e esses nobres viam que tal crítica lhes permitiria enfraquecer a Igreja e se apropriar de seus bens). De modo que emergia naquele momento, a primeira grande crítica do catolicismo que foi vitoriosa: a Reforma Religiosa Protestante.

O nome se deve a última tentativa de cerceamento da expansão da fé dissidente quando, por ocasião do tratado de paz de 1555, que encerrou a primeira onda de guerras religiosas na Alemanha, o imperador Carlos V reconheceu a existência dos dissidentes mas proibiu sua expansão, eles protestaram, sendo denominados protestantes desde então.

Pois bem, boa parte do protesto de Lutero, um monge agostiniano que como tal era um cioso membro da Igreja interessado em seu sucesso e expansão, tinha relação com a chamada venda de indulgências (venda do perdão celestial) e o comércio das “relíquias sagradas”. Tratava-se de puro charlatanismo e demagogia que escandalizou Lutero. Para financiar o luxo e a ostentação da então em fase de construção Basílica de São Pedro, a Igreja Católica lançou mão, ostensivamente, dos métodos acima listados, a partir dos quais os fieis podiam comprar o perdão divino de seus pecados terrenos garantindo sua presença no paraíso celestial, ou ainda adquirir um pedaço da “cruz sagrada onde Jesus havia sido crucificado”, um pedaço do tecido que haveria coberto seu corpo, e outras invencionices desse naipe. Como já disse, na época eram as chamadas “relíquias sagradas”.

Foi contra esse tipo de coisas que se levantou a indignação de Lutero. Foi contra isso que reagiu e protestou a Reforma. Pois bem, nas idas e vindas desses 500 anos, eis que quando olhamos hoje para a maior parte (ao menos no Brasil) dos movimentos religiosos que reivindicam o legado e o pertencimento da Reforma Protestante, essencialmente o neo-pentecostalismo com sua conhecida “pegada” fundamentalista que vem praticando no cotidiano de suas “igrejas” (às vezes tenho certo pudor de assim me referir a elas), mais ou menos, pra não dizer exatamente o mesmo que fez com que Lutero se indignasse e iniciasse a Reforma: quem não viu ainda nos programas de TV, nos carros de som que eles contratam pra atrair seus consumidores (me parece mais apropriado que fieis), nas cerimônias rituais encenadas por essa gente, a venda de um “pedaço do tapete santo da fogueira de Israel”, um saco de água de 10 ml com alguma essência de cheiro bom, vendido a 5 reais sob desculpa que se trata de “água ungida do Rio Jordão”, os discursos que circulam na rede de “pastores” políticos que afirmam, claramente que o tamanho da benção que Deus pode conceder a alguém está subordinada ao tamanho da doação concedida, não às igrejas (muitas com belíssimas histórias de acolhimento, sensibilidade social, filantropia), mas a esses mercenários da fé, que manipulam as aflições e boas intenções do povo. Num conhecido vídeo que circula na internet, o “pastor pop deputado” Marco Feliciano afirma que o indivíduo pede a benção mais não deixa a senha do cartão de crédito, então como é que Deus vai conceder a graça?

Foi contra isso que surgiu a Reforma, e é nisso que se transformou boa parte do legado de Lutero. Deve estar se revirando no túmulo, nosso monge idealista. Talvez parte do esvaziamento de reflexão sobre esse tema que hoje vemos na historiografia – dialogando portanto com a provocação do meu caro Orivaldo Junior – tenha relação com a rejeição ideológica em debater um campo de possibilidades que nos parece, às vezes, perdido para a cidadania contemporânea. A tremenda desilusão com pastores que escravizam dependentes químicos em obscuras “comunidades terapêuticas”, promovem lavagem cerebral e estelionato ostensivo com comunidades inteiras deveriam na verdade ser mais um estimulo pra denunciarmos tais praticas e não para ignorá-las. Então, nesses 500 anos de Reforma, precisamos de mais reflexão, denúncia e crítica e menos celebração. Menos demagogia da parte deles e menos alheamento e mais engajamento de nossa parte. Ao protestantismo histórico, ético, respeitador das diferenças (igrejas protestantes tem se destacado mundo afora pela maior relação de tolerância e sensibilidade às problemáticas de gênero por exemplo) todo meu respeito. Aos pastores, aos clérigos que praticam a mensagem de amor, de inclusão, a mensagem comunista do Cristo, minha admiração e apreço, aos demagogos e empresários da fé meu combate e meu desprezo.

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