A PEC 181, aborto e direitos humanos no Brasil
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A PEC 181, aborto e direitos humanos no Brasil

14 de novembro de 2017

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Era noite do dia 08 de novembro, última quarta-feira, quando uma Comissão Especial aprovou com 18 votos (masculinos) a favor e 01 (feminino) contra, a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 181/2015, que originalmente tinha como escopo ampliar a licença maternidade para mães de bebês prematuros. Essa proposição, por óbvio, não comportava contraditórios, visto que parlamentar ou partido nenhum ousaria ser contrário a demanda tão nobre e, aqueles que não nutrem apreço por direitos trabalhistas, já tinham eliminado as chances de qualquer ganho quando aprovaram a reforma trabalhista ora em vigor.

Ocorre que numa faceta covarde e oportunista, a bancada da bíblia enxertou nesta proposta uma matéria que lhe era completamente alheia – o direito à vida desde a concepção, oração que se traduz em proibição ao aborto. Mas o aborto no Brasil já não é proibido? Sim, exceto em três situações: em caso de estupro, em situações de risco para a vida da mãe e em caso de feto com anencefalia. Apelidada de PEC Cavalo de Tróia em razão desta grotesca modificação, a proposta passará por votação de destaques e seguirá para apreciação do plenário da Câmara Federal onde precisará obter 308 votos favoráveis para seguir para o Senado.

Não é de hoje que enfrentamos tentativas de retrocessos nesta matéria por parte do legislativo federal. Desde a década de 1940 tramitam, no Congresso, projetos de lei que versam sobre o aborto buscando impedir qualquer avanço da pauta da legalização e retroceder a legislação atual, criminalizando o aborto em todos os casos. O PL 478/2007 (“Estatuto do Nascituro”) e o PL 5069/2013 (que visa complicar o acesso legal ao aborto em mulheres vítimas de violência), que ainda tramitam como ameaças reais aos direitos das mulheres, são exemplos disso. São inúmeras as PEC’s de teor semelhante que propõem a definição da vida como inviolável desde a concepção.

A baixíssima representação política feminina (10% na Câmara Federal e 14% no Senado) favorece a tomada de posições cujo principal grupo atingido sejam justamente as mulheres. Ainda assim, a que se dizer, esse tema nunca foi consenso sequer entre as mulheres parlamentares federais. O fato é que os direitos sexuais e reprodutivos das mulheres são frequentemente ameaçados por projetos de lei e de emendas à Constituição apresentados por homens da bancada fundamentalista.

A PEC 181/2015 nada mais é que uma manobra legislativa que busca retroceder naquilo que o Direito Penal brasileiro consagrou há quase oitenta anos, criminalizando as poucas exceções em que a conduta do aborto é considerada legal em nosso país. O Código Penal Brasileiro trata o procedimento do aborto como crime, mas possibilita essa prática, sem penalidade, para os casos de gravidez decorrente de estupro ou risco de morte para a mulher.

Os princípios para essa definição em 1940 não advieram de uma preocupação com a dignidade da mulher, mas da ideia de proteger a família. A preocupação era com a moral familiar, de que o filho que a mulher viesse a ter fosse do seu marido e não um “bastardo”. A conotação era da preservação da família, e não uma preocupação com os direitos ou com os sentimentos das mulheres. Quase oito décadas após nos vemos ainda tendo que defender as mulheres como seres humanos, e não como meros receptáculos ou corpos destinados a parir, sob quaisquer circunstâncias.

Uma pesquisa do Ipea realizada em 2011 estimou que no mínimo 527 mil pessoas são estupradas por ano no Brasil, cerca de 89% das vítimas são do sexo feminino e 70% são crianças e adolescentes. Negar o direito ao aborto em casos de estupro significa submeter meninas e mulheres a uma nova violência, levando para frente uma gravidez fruto de uma agressão cometida em sua maioria por parentes ou conhecidos das vítimas. Não é aceitável que desconsideremos os efeitos de uma gestação deste tipo na vida, na saúde e na dignidade das mulheres que desejem a sua interrupção.

Somente um parlamento misógino poderia pautar algo dessa natureza, e somente uma bancada golpista poderia aproveitar-se de uma matéria consenso que é a extensão da licença-maternidade para mães de filhos prematuros para instalar tamanho retrocesso. Mesmo em temas polêmicos como o aborto, alguns limites não deveriam ser transponíveis, e colocar a função reprodutiva da mulher acima de sua própria dignidade, deveria ser um deles.

Em um ano pré-eleitoral e num cenário onde temos o Congresso mais conservador da história, é preciso que reflitamos acerca da eleição de parlamentares que fazem da sua atuação política uma extensão de suas crenças religiosas. Impedir uma mulher que engravidou em decorrência de uma violência sexual de abortar legitima a violência que ela sofreu e menospreza a gravidade do crime que foi cometido contra ela.  Numa inversão nefasta, significa punir as vítimas da violência e condená-las a prisão ou a clandestinidade.

A carga moral e o irracionalismo que regem a maioria dos debates sobre aborto no Brasil, impedem que se reflita sobre o quão ineficaz é a legislação penal no que tange à prevenção do aborto e proteção à vida pré-natal. As mulheres não deixam de praticar o aborto voluntário em razão da proibição legal. A taxa de condenações criminais é absolutamente desprezível – se não fosse, seria necessário transformar todo o país numa imensa prisão, para comportar milhões de brasileiras que já praticaram aborto fora das hipóteses legalmente permitidas. Do ponto de vista prático, a criminalização do aborto só produz a exposição da saúde e da vida das mulheres brasileiras, sobretudo as mais pobres, a riscos gravíssimos.

A legislação em vigor não “salva” a vida potencial de fetos e embriões, mas sim retira a vida e compromete a saúde de milhões de mulheres. A criminalização do aborto empurra centenas de milhares de mulheres a procedimentos clandestinos e perigosos, realizados sem a mínima condição de higiene e segurança, como revelou o Dossiê Aborto: Mortes Previsíveis e Evitáveis, feito pela Rede Feminista de Saúde, em 2005. As sequelas decorrentes destes procedimentos representam hoje uma das maiores causas de mortalidade materna no país, ceifando todos os anos centenas de vidas de mulheres jovens, que poderiam e deveriam ser poupadas.

Nenhuma discussão sobre o aborto deveria desconsiderar que ele é um fato real e concreto, e que as mulheres fazem aborto com ou sem legislação que as protejam. A decisão de interromper uma gravidez não é uma coisa fácil. Resumir o debate sobre o aborto em ser “contra ou a favor” é tão medíocre quanto inútil, pois não reduz o número de abortos e não possibilita com que as mulheres parem de morrer. O oposto disso acontece nos países em que o aborto foi descriminalizado ou legalizado.

Um retrocesso desta envergadura iria expor um contingente ainda maior de mulheres aos riscos de um aborto clandestino. No Brasil, estima-se que aconteçam cinco milhões por ano, muitos deles entre adolescentes. Ocorre que a parte abastada da população, na hipótese de uma gravidez indesejada, pode fazer a opção por um aborto seguro. Mas a liberdade de interromper a gravidez sem colocar a própria vida em risco não está acessível à maioria das mulheres brasileiras.

Desde ontem diversos atos estão acontecendo em todo país, mobilizando a justa raiva e a revolta das mulheres. Precisamos de alterações na legislação para garantir os direitos reprodutivos das mulheres e ampliar o direito à interrupção segura da gravidez, não para retroceder neles. O que os 18 parlamentares que votaram favoráveis à PEC 181 disseram é que nossas vidas não têm valor para além dos nossos úteros; que uma mulher que deseje interromper a gravidez resultado de um estupro merece morrer ou ir para a cadeia.

É preciso que cada um e cada uma de nós denuncie e diga para os parlamentares federais de seus estados que aqueles que legislam sobre os corpos das mulheres com uma bíblia na mão e uma espada na outra não terão os nossos votos na próxima eleição. Antônio Jácome (Podemos/RN) e os demais 17 deputados que votaram favoravelmente à criminalização do aborto legal precisam saber que, num país onde o fascismo se candidata e almeja usar faixa presidencial, nós seguiremos resistindo. Afinal, somos todas clandestinas.

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