A beleza que oprime
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A beleza que oprime

26 de dezembro de 2017
A beleza que oprime

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Com o poema “Receita de Mulher”, Vinícius de Moraes consagrou a controvertida frase: “As muito feias que me perdoem, mas beleza é fundamental”. Escrito em 1959, o poema descreve a mulher desejada: “É preciso que as extremidades sejam magras; que uns ossos despontem, sobretudo a rótula no cruzar as pernas, e as pontas pélvicas no enlaçar de uma cintura semovente. Gravíssimo é, porém, o problema das saboneteiras: uma mulher sem saboneteiras é como um rio sem pontes.”

A lembrança do poema não surge por acaso. Entramos oficialmente no verão, época que agudiza uma paranoia presente em todas as estações do ano na vida das mulheres ocidentais. Delas não se espera menos do que corpos esculturais para desfilar na praia; que sejam jovens, sem marcas ou imperfeições. No máximo temos o direito de gravitar em torno de duas variações: as de espécie pomar, onde estão representadas as mulheres-frutas (Mulher Melancia, Mulher Moranguinho, Mulher Melão) ou a modalidade Top model ou “manequim”, termo adequado quando pensamos que são corpos destinados a exposição de roupas.

O que num olhar apressado pode parecer um tema fútil, é na verdade um poderoso sistema de dominação que desafia a luta das mulheres, minando todas as conquistas que obtivemos nas últimas décadas. Quanto mais autonomia individual as mulheres conquistaram, mais cresceu a exigência de conformidade aos modelos sociais do corpo. Na medida em que as mulheres se libertavam da mística feminina da domesticidade, castidade, maternidade e passividade, época em que a moral exercia o papel de coerção social, o mito da beleza se fortaleceu como ideologia capaz de controlar as mulheres.  Como nos trouxe Naomi Wolf, o ideal de beleza feminina surge como arma política contra a evolução da mulher. Ele procura destruir de forma velada tudo que o feminismo proporcionou às mulheres material e publicamente.

Se as mulheres conseguiram romper com o modelo da feliz dona-de-casa como parâmetro de feminilidade bem-sucedida, esse passou a ser representado pela modelo jovem e esquelética. Se as mulheres conquistaram algum nível de domínio sobre seus corpos com a possibilidade de controle da reprodução que surgiu com a pílula anticoncepcional, o peso das modelos caiu, aumentando drasticamente os distúrbios ligados a nutrição, como anorexia e bulimia, minando por meio da alimentação a sensação de controle das mulheres sobre seu próprio corpo.

Embora a preocupação com o embelezamento na sociedade contemporânea também atinja os homens, é das mulheres a obrigação da beleza.  Uma beleza que não é universal, natural e menos ainda ingênua, mas construída como um conjunto de crenças para preservar o domínio masculino, para manter a estrutura de poder contemporâneo, numa contraofensiva contundente contra as mulheres, destruindo-as psicologicamente e fazendo-as competir umas com as outras.

O ideal de beleza feminino nada tem de preocupação com o bem-estar ou com a longevidade das mulheres. Ele diz respeito mais aos comportamentos femininos julgados desejáveis para cada período. Verdadeiramente o ideal de beleza não dita a aparência, mas o comportamento feminino. E o faz com tal êxito que a beleza passa a ser um atributo vital, que determina a identidade e o valor da mulher, tornando-as vulneráveis ao julgamento externo e minando seu amor próprio.

Uma pesquisa mundial da Unilever mostrou que 63% das brasileiras querem fazer cirurgia plástica, o maior índice mundial da pesquisa. 89% querem mudar algo no corpo. Sete em cada dez brasileiras deixam de fazer alguma atividade quando se sentem feias ou gordas (deixam de ir à praia, a festas e até ao trabalho). Dos países investigados, o Brasil desponta como aquele em que as mulheres declararam mais preocupação em ter um rosto bonito, o corpo em forma e uma imagem sexy. Somos o país campeão em consumo de produtos cosméticos e tinturas de cabelo. 58% das brasileiras declararam que se a cirurgia plástica fosse gratuita, iriam de imediato para o bisturi.  A pesquisa mostrou ainda que as brasileiras são as que mais se enxergam gordas e pouco sexy. Entre as pesquisadas, apenas 2% disseram que se acham bonitas.

Com essa pesquisa, não é de se estranhar que sejamos o país que mais consome cirurgias plásticas no mundo. Ultrapassamos os Estados Unidos, onde as mulheres têm renda bem maior que as brasileiras. Em nenhum lugar do mundo investe-se tanto no corpo como em nosso país. Dados da ONU mostram que o Brasil tem o maior consumo mundial per capita de remédios para emagrecer. Somos o país líder no consumo de moderador de apetite. Aqui, o embelezamento virou gênero de primeira necessidade ao ponto de trazer efeitos nos orçamentos femininos. Mas o comprometimento financeiro, lamentavelmente, não é a principal questão.

Estamos falando de corpos controlados, mutilados, que se privam do sexo ou precisam transar no escuro para esconder suas imperfeições. Mulheres eternamente insatisfeitas, lutando contra si mesmas. Submetidas a um padrão europeu de beleza, perseguem a juventude, a “perfeição” e a magreza pelos meios mais inacreditáveis. Numa mistura de ciência e fé, buscam tratamentos, cosméticos e cirurgias que prometem mágicas ou milagres. O envelhecimento é negado e tido como sinal de decadência do corpo. A autoimagem é confrontada diuturnamente por milhões de imagens disseminadas pelos meios de comunicação.

Em ritmo epidêmico, as neuroses com o corpo ideal atingem as mulheres cada vez mais cedo e solapam de forma lenta e imperceptível o terreno conquistado através de árdua e longa luta. Não temos a real dimensão da força que o mito da beleza ideal exerce sobre a vida das mulheres. É um tipo de prisão sem saída. Uma luta onde não há um inimigo que se possa localizar e enfrentar. O sistema opera na autodestruição e aniquilamento.

É uma luta para qual fazer passeatas e cartazes parece não surtir efeito algum. O enfrentamento depende do que decidimos ver quando nos olhamos no espelho. Depende de transformarmos nosso sentido de beleza e nos tornarmos incapazes de olhar nossos corpos como amontoados de imperfeições. De decidirmos fazer política com nossos corpos e transgredir as normas impostas. De sermos todas um pouco Leila Diniz, que foi com seu barrigão de biquíni para Ipanema, exibindo à luz do sol seu corpo grávido, numa época em que a barriga da gravidez era considerada feia e escondida com batas escuras e largas.

O controle do corpo feminino é a principal forma de servidão contemporânea, e o desafio de amar a nós mesmas é uma urgente revolução.

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