Entre quatro paredes
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5 de dezembro de 2017
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Prática cotidiana, a violência contra mulheres e meninas ocorre todos os dias, no Brasil e no mundo. Está associada às relações e estruturas que geram desigualdade e opressão, numa tríade em que gênero, raça e classe retroalimentam um sistema perverso de exploração. Se a luta pelo fim da exploração do homem pelo homem está base dos anticapitalistas, é preciso compreender que as mulheres sofrem um tipo de subjugo e exploração adicional, de caráter sexista, que se dá pelo simples fato de sermos mulheres. As tentativas de apartar ou hierarquizar em grau de importância as questões de gênero, raça e classe, ignoram a sua indivisibilidade e são inúteis à luta pelo fim da exploração.

A violência sexista está em todos os lugares. Na rua, no transporte público, nos locais de trabalho, nas redes sociais, mas é dentro de casa, entre quatro paredes que ela predomina. Esse fenômeno social é tão cruel quanto naturalizado. Os agressores costumam ser pessoas muito próximas das vítimas, o que dificulta a denúncia e até mesmo o reconhecimento da violência como uma questão intolerável. É como se os laços de relacionamento entre mulheres e homens dessem, aos últimos, o direito sobre os corpos e a vida das mulheres.

Por muito tempo esse foi considerado um assunto da vida privada das famílias, o que dava origem a famosa frase “em briga de marido e mulher ninguém mete a colher”. Foi pela ação do movimento feminista que a violência contra a mulher deixou de ser vista como uma questão particular dos casais para ser enxergada como um problema social e político, de ordem pública e responsabilidade do conjunto da sociedade.

Ainda assim, estamos falando da violência que talvez seja a mais “justificada” socialmente, ainda nos dias atuais. Tenta- se justificar pela bebida, pelo uso de outras drogas, pelo desemprego, por ter perdido a cabeça. Isso quando não se responsabiliza a própria mulher pela violência sofrida, o que ocorre comumente, em especial nos casos de violência sexual. Uma pesquisa realizada pelo Ipea em 2014 comprova essa inversão; nela, 58,5% dos entrevistados consideraram que “se as mulheres soubessem se comportar, haveria menos estupros”.

Afora a relativização explícita que essas “justificativas” carregam, concebendo-se que é plausível e legítimo agredir uma mulher, elas têm o efeito de minorar a responsabilidade dos agressores e dificultar que as mulheres saiam de situações de violência, na medida que induz a um pensamento de que bastará ao homem parar de beber para a violência cessar, ou assumirem-se de fato como culpadas, ou ainda sentirem-se responsáveis por cuidar do homem “doente/ descontrolado”.

Quando a violência é sexual, não é incomum encontrarmos argumentos ancorados na ideia de uma sexualidade masculina que difere da feminina. Enquanto a da mulher só afloraria quando provocada, há quem acredite numa incontrolabilidade do desejo sexual masculino. O que, em sendo verdade, deveria nos levar a ver, a todo hora, relações sexuais, ou mesmo estupros, nas ruas, padarias ou academias de ginástica.

A tese de que os homens não conseguem controlar seu desejo sexual dificulta o debate e a compreensão sobre a violência machista. As denominações de “monstro”, “animal”, “doente”, em referência ao agressor, são recorrentes. O sujeito é tudo, menos um homem covarde e machista, o que termina por medicalizar ou desumanizar a questão da violência contra as mulheres e nos afastar da possibilidade de analisar esse fenômeno de forma precisa, debatendo suas causas e as estratégias para o seu enfrentamento.

Quando falamos de violência contra a mulher, ainda pairam compreensões de que é preciso preservar a família, por pior que ela seja, ou de que seja uma vergonha para a mulher expor tais violências. Via de regra, um marido que espanca a esposa é poupado em vários ambientes, seja por esse fato não ser de conhecimento público, seja porque ainda há um constrangimento social em abordá-lo.

O fato é que a violência sexista é mais presente do que se imagina. No Brasil, ocorrem 5 espancamentos a cada 2 minutos. Uma em cada dez mulheres já foi espancada pelo menos uma vez na vida, segundo pesquisa da Fundação Perseu Abramo de 2010. O 9º Anuário de Segurança Pública (2015), revelou 1 estupro a cada 11 minutos, enquanto o Ipea, em 2013, apresentou o dado de 1 feminicídio a cada 90 minutos em nosso país. O Instituto Maria da Penha divulgou que a cada 7,2 segundos uma mulher é vítima de violência física e, somente em 2015, a Central de Atendimento à Mulher – Ligue 180, realizou 749.024 atendimentos, ou 1 atendimento a cada 42 segundos.

Apesar dos importantes avanços legais que conquistamos, especialmente a Lei Maria da Penha, a violência permanece sendo uma realidade para muitas mulheres, o que se agrava quando falamos das mulheres negras e pobres ou das mulheres trans e lésbicas. Muitos fatores contribuem para sua perpetuação: a impunidade dos agressores, o silêncio das mulheres agredidas e o aval social que naturaliza a violência e transforma vítimas em culpadas, entre outros.

Presenciar ou ouvir relatos de violência contra as mulheres é algo profundamente chocante. O feminicídio é a ponta do iceberg de um conjunto de outras violências que em geral começam com um tom de voz que aumenta, empurrões, tapas, queimaduras, estupros, a mulheres que vivem sob medo e ameaça, muitas vezes não podendo dormir para vigiar a própria vida ou a de suas filhas.

No marco dos 16 dias de ativismo pelo fim da violência contra as mulheres, que no Brasil se inicia em 20 de novembro, o Dia da Consciência Negra, e termina em 10 de dezembro – Dia Internacional dos Direitos Humanos, temos o desafio de contribuir para a denúncia, para a construção das redes de enfrentamento, para implementação de políticas públicas, para a capacitação dos agentes públicos, para o empoderamento de mulheres e meninas, como formas de enfrentamento.

Temos ainda que nos desafiar a refletir e enfrentar a tendência punitivista presente em amplas parcelas da sociedade, inclusive em movimentos sociais reconhecidos por pautas emancipatórias, como o movimento feminista. Ainda que este não seja um debate simples de se fazer, não é possível ou satisfatório que defendamos o aumento do Estado penal como solução para quaisquer conflitos sociais. Temos provas de sua inaptidão para o despertar de mudanças, da sua ineficácia na redução da violência, da sua seletividade e capacidade de perpetuar o estado de coisas vigente.

O feminismo que defendemos precisa ser anticapitalista e antirracista. A redução das questões de gênero como questões meramente identitárias não serve às mulheres trabalhadoras. O feminismo que defendemos é abolicionista e considera as mulheres em toda sua pluralidade. Somos muitas, de diferentes cores, credos, idades e orientações sexuais e juntas venceremos.

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