Não contém glúten!
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2 de janeiro de 2018
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Há um novo tipo de homem por aí. Uma nova espécie de metrossexual que só come alimentos saudáveis, produtos light, diet, sem glúten ou lactose. Os antropólogos ainda não se deram conta, os sociólogos também não, os psicólogos talvez. Nem mesmo o Xico Sá percebeu ainda este novo homem ainda não catalogado, este Cristiano Ronaldo tomador de shake, aminoácidos e derivados do açaí. Este amigo do espelho que trocou o creme para cotovelos por batom de manteiga e cacau para não ressecar os lábios durante a malhação e o gel nos cabelos por gel de vaselina a fim de evitar assaduras durante a corrida.

 Este novo homem que anda por aí, co-habitando este planeta, respirando o mesmo ar que nós, homo-sapiens convencionais (mais ofegantes, algumas vezes), frequentando os mesmos lugares (principalmente academias, seções de hortifrúti e farmácias) e comunicando-se numa linguagem humana, apesar de repleta de neologismos de origem incerta, como whey, amino, isotônico, e todo um vocabulário baseado no consumo de substâncias revigorantes e potencializadoras de desempenho.

 Este novo humanoide ainda não registrado tem causado controvérsia entre os que já notaram sua chegada. Não se sabe se é um novo degrau na escala evolutiva ou um ponto fora da curva, um escorregão, uma mutação que não se safará da implacável seleção natural, comandada pela única lei que não se revoga: a da natureza. A questão é que este novo modelo de ser humano (que muitas vezes, faz bico de modelo mesmo) está aí para quem quiser ver, desfilando seu corpo sarado e suado, tomando açaí pra dar mais energia e soltando puns com essência de clara de ovo, oriundos do grande volume de Albumix ingerido.

 É o chamado de “Homem Glúten”, que recebeu esta alcunha, aliás, exatamente por NÃO ingerir nada que contenha glúten, seja lá o que seja esta tão falada, mas pouco conhecida substância, elemento fundamental do vocabulário alimentar atual e componente indispensável à paranoia saudável que surge poderosa e irrefreável diante da vida moderna.

 O “Homem Glúten” não come glúten, mas não só isso. Há toda uma infinidade de itens a serem evitados pelo seu código de conduta moral cujo restrito cardápio permite pouquíssimos alimentos, uma vez que há uma extensa lista de proibições. A lactose, por exemplo, é outra séria limitação autoimposta por este obstinado adepto da prática desportiva e da pureza, que vai do ascetismo ao atletismo, rápido e desenvolto.

 Amante da leitura, o “Homem Glúten e Lactose” aprecia uma literatura bem específica: não perde um rótulo de produto ou composição clórico-protéica de embalagem. Também procura consumir produtos com baixo índice de gordura, temperados frugalmente e consome tanto peito de frango que dá pra sustentar toda a cadeia produtiva da avicultura por várias gerações.

 Está sempre pesquisando as novidades. Novas marcas de produtos, a torrada integral sem adição de amido, o biscoito de arroz integral sem sabor de nada, o suco verde de clorofila com abacaxi, hortelã e vagem, ou a banana desidratada que vai muito bem com o iogurte ateniense sem gosto de iogurte. Tudo muito nutritivo e incontestavelmente saudável. Porém, com a mesma emoção de dançar lambada com a irmã.

 E por falar em “integral”, esta é uma palavra bastante em moda e quase obrigatória nas refeições livres de glúten, lactose ou sabor. O arroz, o macarrão, o pão, os biscoitos e até a pizza têm que ser tão íntegros que deveriam apresentar currículos comprovando idoneidade antes da ingestão. Os temperos passam a receber atenção especial. Os cozinheiros e chefs costumam ser consultados sobre modos de preparo de alguns pratos, em perguntas cheias de curiosidade, pedindo detalhes pormenorizados e minúcias de investigador da polícia civil.

 O metrossexual alimentar também curte um bom par de tênis com amortecedores especiais e mais cores que a escala Pantone e os quadros do Romero Brito juntos. Também aprecia uma blusa que valorize o volume peitoral e evidencie seus bíceps, carinhosamente esculpidos em seguidas séries de levantamento de barras. Sem falar na profunda emoção que sente ao entrar numa sala cheia de espelhos.

 O contrário do “Homem Glúten e Lactose” é aquele que “Come de Tudo”, o equivalente ao machão do mundo alimentar, aquele que traça uma macarronada a qualquer hora do dia, que se amarra numa carne vermelha e que devora arroz, feijão e ovo frito com gema e tudo (mole, faz favor). Este herói, destemido e inconsequente, é um homem à moda antiga, que não sabe o que é glúten, que toma leite, come hambúrguer e se esbalda numa panelada, churrascada, caldeirada ou rabada. Este comportamento nada seletivo deixa o “Homem Glúten e Lactose” fora de si. Ele simplesmente não entende como alguém pode agir assim em pleno século 21 com tanta informação disponível a respeito do que se pode e o que não se pode comer. Ao ver um “Homem que Come de Tudo” devorar uma picanha mal passada, ele faz cara de nojinho, torce a boca e declara solenemente: “Eca!”

 Se for confirmado que o “Homem Glúten e Lactose” veio pra ficar, é possível que todos nós que insistimos em nos alimentar de forma, digamos, rudimentar (para não dizer primitiva) sejamos descontinuados pela seleção natural. Como um automóvel que sai de linha ou um aparelho tecnológico obsoleto. Seremos eliminados, como um dia foram nossos antepassados das cavernas para dar origem a versões mais modernas e melhores de primatas: nós. Agora, seria a vez do Homo Saudabilis, este previdente e novo ser humano a nos tirar de circulação. 

 Bem, se for esta a vontade da natureza, que seja! Que se há de fazer? Mas que seria uma tremenda injustiça, além de uma enorme contradição, não há como negar. Porque o “Homem que Come de Tudo” é muito mais versátil e, em tese, teria maiores chances de sair vivo em tempos de privações extremas e catástrofes de grandes proporções. Ou você acha que, no caso de uma tragédia natural, a gente não precisaria de uma maior variedade de repertório, tendo de comer a primeira coisa que surgisse em nossa frente? À base de barrinha de cereal é que a gente não ficaria. 

 Mas tudo isso é especulação. Não se sabe se ele veio pra ficar, se vai tomar o nosso lugar, se vai seguir em frente ou desaparecer. Seja lá para onde for, só há uma certeza: ele vai correndo. Só deve parar um bocadinho se encontrar um espelho ou uma loja Mundo Verde pelo caminho.

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