Retrospectiva 2017
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Retrospectiva 2017

4 de janeiro de 2018
Retrospectiva 2017

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Creio que para aqueles que,  como eu, nasceram entre as décadas de 70, 80 e 90 do século XX,  podemos falar de um fenômeno daquele tempo, que teve a ver na época com os processos de massificação da TV que se processaram  no Brasil justamente naquele período, de modo que acho razoável aplicar o conceito de geração “teleton” pra definir quem nasceu e cresceu num tempo onde já se tinha TV e vídeo game, mas nem se sonhava com celulares e internet. A TV, evidentemente, é mais antiga. Mas não era algo popular: para uma geração antes da minha (nasci nos anos 80) ainda era comum o hábito das pessoas verem TV publicamente, numa praça, ou mesmo na benevolência pontual de vizinhos mais abastados, em suas casas.

Me recordo quando criança no bairro do Alecrim, em meados dos anos 80, o furor que causou entre a vizinhança quando minha mãe comprou nossa primeira TV em cores, era um tal de “posso assistir ai com vocês” que não parava mais e, como o senso de comunidade era mais desenvolvido naquela época, dentre outras coisas, justamente porque as pessoas não tinham, como hoje, todas seus próprios aparelhos de ver o mundo e comunicar-se, quase sempre acolhíamos com alegria nossos vizinhos para juntos vermos, sem a concorrência da internet, as grandes atrações daquele tempo: as novelas, os noticiários, os filmes (ai de quem perdesse de ver um filme um dia na TV aberta que ou tinha que alugar e ver no vídeo cassete – um luxo diga-se de passagem ao qual só tive acesso já nos anos 90 – ou esperar um ano ou mais para que aquele filme reprisasse), as series não podiam ser vistas em maratona, a gente tinha que esperar cada novo dia ou semana pra ver os novos episódios.

Da vontade de rir lembrar de tudo isso. Hoje, perdeu um episodio, não viu o filme, quer rever uma cena de algo, uma noticia, o que for: procura na rede, acessa na internet, tudo vai ta lá, até o que você nem ia querer ver, como blogs ou sites, páginas do youtube, que analisam filmes, séries, novelas e tudo mais, desconstruindo-os, para o “bem e   para o mal”, totalmente, de modo que a maior parte da “graça” que se tinha, por exemplo, em ver um filme de terror nos anos 80, é quase impossível de se ter hoje. Naquele tempo não era possível desmontar toda a lógica da maquiagem, dos efeitos cênicos, sonoros, visuais, que constituíam a narrativa televisiva, hoje, a narrativa digital, tudo desencanta, tudo desmonta e aponta, mas esse não foi o paradigma com o qual cresci.

Apesar de tudo que falei antes, não queria a volta do Império da TV. Amo e assisto TV até hoje, já superei aquela paranóia de que militante de esquerda não pode ver TV porque é alienante. Por muito tempo, talvez quase dez anos, praticamente aboli a TV da minha vida por questões ideológicas e mesmo por substituí-la pela internet até que um dia num supermercado, percebi o furor das discussões em torno da questão do beijo gay em novelas, provocado na época (2013) pela exibição da novela da Rede Globo “viver a vida” que acabou finalizada com o primeiro (apesar de mui contido) beijo gay masculino da história da TV aberta brasileira, protagonizados por Matheus Solano e Thiago Fragoso.

Vi que as senhoras, os jovens, até mesmo homens com estereótipo machista, discutiam o tema, enviesadamente ou não, mas discutiam o tema, graças a novela. Naquele momento percebi o qual alienante, pode ser não assistir TV, talvez tanto quando só assistir TV era pra nós nos anos 80 e 90 e isso pode ser muito bem constatado, do ponto de vista sociológico, pelo clássico de Debord “A sociedade do espetáculo”.

Bendita, benvinda internet, que nos libertou do monopólio da informação da grande e manipuladora, imprensa aberta brasileira.  Talvez seja justamente esse um dos maiores méritos do nosso tempo: a possibilidade de acessar a informações por vias outras que não somente os grandes monopólios midiáticos que no Brasil estão em geral nas mãos de políticos e empresários absurdamente desonestos com tudo, mas muito especialmente me refiro aqui, com a falta de compromisso ético com a transparência, veracidade e capacidade informativa da notícia.

Lembro que como parte da geração Teleton, um dos programas que eu mais curtia ver era a “retrospectiva do ano em questão”. Como, volto a dizer, não havia internet, era quase que a única maneira de rever conteúdos variados que haviam marcado o ano. Há muitos anos que não via esse tipo de programa, por razões  variadas, afinal vejo TV, tanto aberta quanto fechada, vejo com moderação e com muito critério na escolha dos programas com os quais vou “perder meu tempo”, mas vejo. Por outro lado, como socióloga que pensa os problemas de seu tempo, graças as constatações feitas no exemplo da novela acima citada, meio que me obrigo a ver ao menos um telejornal e uma novela na TV aberta de maior alcance no pais, a  Globo, como uma forma de dialogar com o que se consome como cultura de massa atualmente. Inclusive é essa uma das motivações da escrita dessa coluna: abandonar o esoterismo excessivo da narrativa acadêmica e mergulhar num âmbito de diálogo mais amplo, com a sociedade não acadêmica inclusive e especialmente.

Esse ano de 2017 bateu de eu estar em casa na noite da retrospectiva da Globo, e decidi assistir. A sensação foi de uma viagem no tempo, não somente relativamente ao ano de 2017, quem dera só isso fosse. Me senti transportada para um tempo onde ainda existia Guerra Fria, capitalismo x comunismo, arrocho salarial e perda de direitos, o menor aumento real de salário mínimo dos últimos 24 anos foi solenemente ignorado pela retrospectiva que preferiu se agarrar a uma no mínimo míope e no limite mal intencionada visão de mundo.

Ao proferir chamadas como “Coreia do Norte: uma ameaça cada vez mais próxima”, parecia que a voz de Sergio Chapelin, falava de algo lá de 1997, ou mesmo 1987: a ideia de que um micro pais “comunista” pode destruir o mundo com uma arma nuclear. Mesmo que todos os estudos apontem que o potencial bélico, nuclear dos E.U.A sejam mais de 200 vezes o da Coreia do Norte, nossa imprensa golpista de direita continua a considerar a Coreia do Norte uma “ameaça cada vez mais próxima”, de quem???

Quantas vezes na história do Brasil a Coreia do Norte foi uma ameaça para nós? Agora se a mesma pergunta for feita em relação aos E.U.A a resposta é muito mais fácil de ser dada: quase sempre, permanentemente, os E.U.A são uma ameaça ao Brasil, pela razão pura e simples de que ameaçamos, com nosso gigantismo territorial e potencial econômico-ecológico a máxima que mais constituiu os E.U.A como nação em sua relação com o restante do continente a Doutrina Monroe (1823)  “A América para os americanos”, entendida na pratica da ciência política como a América é o quintal das ações dos E.U.A e não mais da Europa como houvera sido até então. Tal doutrina, desenvolvida e praticada com eficácia a partir da chamada politica do Big Stick (O grande Porrete, literalmente), que fez com o século XX fosse mais sangrento no continente latino americano que o próprio século XIX que houvera sido de “descolonização”.

Uma longa lista de intervenções militares diretas ou de golpes militares patrocinados pelo capital norte-americano afim de barrar governos, ideias, movimentos sociais anti-imperialistas que pudessem promover a autodeterminação dos povos explorados do mundo, tem demonstrado que os E.U.A são o grande inimigo a ser combatido para que haja paz no mundo, e não a Coreia do Norte. Os E.U.A são os campeões de invasões de países e violações de direitos humanos no mundo inteiro. Desde a 2ª. Guerra Mundial nenhum Estado mais matou, explorou e reduziu a miséria pessoas no mundo como os E. U.A e isso são dados da ONU, e de grandes teóricos da ciência política contemporânea tais como Noam Chomsky, Benjamim Barber, David Harvey e Tzvetan Todorov.

No que diz respeito ao Brasil, sabemos hoje com ampla documentação disponível no próprio Estados Unidos, que, ao menos duas vezes, planejaram e quase executaram uma invasão ao Brasil: a primeira, durante a 2º. Guerra, caso Vargas não aderisse aos aliados - ainda bem que o fez, e o encontro dos presidentes de E.U.A e Brasil aqui em Natal, em 1942, selou essa aliança; pois do contrário um plano de invasão e ocupação do litoral brasileiro de pelo menos, Belém  até o Rio de Janeiro,  esperava somente ordem de execução. 22 anos depois, por ocasião do Golpe de 1964, lá estavam os americanos prontos pra nos invadir caso “nós mesmos” não derrubassemos Jango, tal como a Dilma em 2016, dizia-se que “com ele não dava”. Os documentos  outrora secretos dos americanos revelam toda ojeriza do queridinho da América o presidente J. F Kennedy ao presidente Jango,  que chega a falar claramente da impossibilidade da permanência de Jango como presidente do Brasil para a “boa continuidade das relações entre E.U.A e Brasil”.

O que dizer da “coincidência” que foi que a embaixatriz dos E.U.A no Brasil durante o Golpe Parlamentar- jurídico de 2016 ser a mesma que houvera sido embaixatriz  americana também em Honduras e no Paraguai quando ambos passaram por ilegais processos de destituição de presidentes, que não se coadunavam com os interesses americanos na região a ponto desta ilustre senhora ser agora taxada nos meios de estudiosos da diplomacia internacional de “Miss Golpe”?

Recentemente veio a público uma informação de um suposto ex agente da CIA que assumia ter participado de uma conspiração desta agência governamental americana para matar o famoso, o imortal, musico jamaicano Bob Marley, porque os ideias presentes nas músicas de  Marley,  ideais de liberdade, de fraternidade humana, de empoderamento dos excluídos  eram uma ameaça ao projeto de poder norte-americano no continente e no mundo. E agora adentro ainda mais no pantanoso terreno da especulação, acerca da “coincidência” que foi que os principais líderes da chamada “America Latina Vermelha” tenham sofrido de câncer no começo dessa década, Kitchner na Argentina, Lula e Dilma no Brasil, Chaves que veio a sucumbir, na Venezuela, será que daqui mais alguns anos alguém virá a público dizer que não foi uma “coincidência”?

Apesar de pontuais abrandamentos e aproximações, menos violentas, como por ocasião da chamada “politica de boa vizinhança” pós aliança com os Aliados, bem como as recentes e mais respeitosas relações que caracterizaram a politica dos E.U.A para com o Brasil, especialmente depois que invocamos o principio de reciprocidade diplomática, que na época tanta polêmica causou mas que foi um verdadeiro grito de autonomia diplomática que o Brasil deu em relação aos E.U.A, (refiro-me ao episódio que marcou uma reviravolta nas relações E.U.A – Brasil na década passada no governo do ex presidente Lula quando passamos a exigir visto dos norte- americanos para entrar no Brasil, tendo em vista que sempre foi somente  o contrario).

Hoje, o governo golpista afirma que vai conceder trilhões de reais em isenções fiscais (num pais que se autoproclama falido a ponto de não poder manter sua Previdência) para as petroleiras estrangeiras, que vierem explorar nosso petróleo. O petróleo não é mais nosso, o que deveria servir pra financiar gerações de brasileiros, ajudando-os a sair da pobreza graças a destinação dos percentuais que haviam sido garantidos em lei de roaylties para a saúde e educação, agora, vão apenas engordar as multinacionais mais ricas do mundo, com aquiescência desse governo que só foi colocado nesse lugar justamente pra isso. Quando vier o acidente ambiental (vide o caso Mariana – MG em 2015) o dano fica conosco, já os dividendos, os que ficarem aqui, serão no bolso dos entreguistas José Serra, Aloysio Nunes,  Aécio Neves, Eduardo Cunha e Michel Temer, porque o percentual que ficaria para financiar o desenvolvimento do país, foi entregue ao capital estrangeiro. E  vejo tanta  gente, especialmente militares, que se dizem patriotas, e não abrem a boca pra denunciar, se queixar, impedir a entrega dos recursos do Brasil, o país  mais rico em recursos naturais do globo.

Nesse exato momento os militares americanos estão na Amazônia, estabelecendo bases para futuras operações contra a Venezuela quem sabe, além de mapear nossas fronteiras, nossos recursos, preda-los, extrai-los, patenteá-los. Mas a retrospectiva 2017 da Globo não fala nisso, para ela  que ainda vive no mundo pré queda do Muro de Berlim e quer nos convencer também a lá ficar, quem é uma ameaça “cada vez mais próxima” é a Coreia do Norte, um estado que desde que foi palco ele mesmo de um dos maiores  e mais sangrentos conflitos da Guerra Fria, a Guerra da Coreia (1950-1953), que terminou com a situação atual de divisão do país, jamais se envolveu novamente num conflito bélico e que historicamente sempre foi o lugar invadido, nunca o lugar invasor: chineses, japoneses, russos e americanos se revezaram no domínio da península da Coreia e ai quando, contrariando pela primeira vez uma história que foi somente de ser dominado e subordinado, o controverso (e não aprovado nem por mim) governo Norte Coreano ostenta uma retórica uma pouco mais inflamada, nossa direitosa mídia golpista quer vender para o nosso povo a ideia de que a Coreia do Norte é “uma ameaça próxima”, quando a real ameaça a historia de autodeterminação do povo brasileiro é,  os E.U.A e mais ninguém. É como se os Estados Unidos dissessem ao Brasil: “esse continente é pequeno demais pra nos dois”.

Para os E.U.A não há espaço para duas potencias no continente americano, e a eleição de Trump e sua retorica nacionalista, fundamentalista, belicosa mostram que a tendência atual é justamente e fortalecimento de uma relação desigual e unilateral entre E.U.A e Brasil, onde voltamos a condição de país subalterno, contrariando a conquista diplomática que havia sido quando Barack Obama, “rendido” pela emergência impetuosa de uma potência regional-global, liderança do cone sul e do agora deveras enfraquecido BRICS, afirmou para desgosto de mídia entreguista por ocasião da última visita oficial  da então presidente Dilma aos E.U.A que “O tempo em que os E.U.A viam o Brasil como liderança regional havia passado e agora (2014-2015) os E.U.A reconheciam o Brasil como potência  global”. Pouco depois o escândalo da espionagem americana ao alto escalão do governo brasileiro fez com que a diplomacia independentista, tomasse um último ato de autodeterminação “retaliando” o governo americano com o cancelamento da visita que Dilma faria aquele país naquele ano do Golpe, sob protestos dos “coxinhas”, que se dizem nacionalistas, mas  não tem escrúpulos em entregar o pais de joelhos aos Yankkes.

Parece que esses tempos, mal chegaram e já passaram, em um ano e meio os golpistas desmontaram a autonomia diplomática internacional brasileira e entregaram todos os nossos direitos e prerrogativas a autodeterminação que durante 13 anos arduamente construímos e, hoje, o Brasil volta a ser para os E.U.A o que eles sempre quiseram que fossemos: um país colonizado, uma extensão do quintal dos E.U.A, afinal, “América para os (norte) americanos”. Nada podia estar anos luz mais distante dos sonhos de Simon Bolivar e Che Guevara.

Vida longa à imprensa digital independente, graças a qual podemos hoje nos informar com mais qualidade, seriedade, na seleção das fontes, da informação em geral, tal como o trabalho que hoje fazemos na Saiba mais.  2017, o pior ano da história recente do Brasil se fecha  com a tão necessária reflexão sobre a necessidade de continuar essa trincheira aberta pela informação de qualidade, independente, instrutiva de fato. Contra todos os fascismos midiáticos que buscam alienar, desinformando e deseducando muito mais que informando, minha denúncia e desprezo, apesar disso continuarei a assisti-los, até para poder critica-los. Afinal, só pode se criticar, o que se conhece...

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