OPINIÃO

Um pouco além do Facebook, pequena fábula sobre a indignação virtual

Senta que hoje o tio vai falar um pouco sério. Em abril do ano passado, ou seja, numa era longínqua em termos de redes sociais, tive que me render ao grotesco gênero chamado de “textão do Facebook”, do qual não sou muito adepto, para relatar um curioso caso que caiu na minha timeline. Era um vídeo sobre três crianças, a mais velha não aparentava ter mais de oito anos, em situação de rua no município de Nova Cruz. Num tom condescendente, alguém denunciava a situação enquanto filmava as crianças na rua, na calçada de uma das pizzarias da cidade, usando aqueles velhos chavões de “olha onde está o futuro do país”, o bom samaritano se despedia das crianças desejando que “encontrassem um caminho na vida”, ou algo do tipo, e deixando o resto de pizza e coca-cola que sobraram.

O que acendeu meu alerta vermelho, na época, é que o vídeo percorreu o velho e bom circuito da viralização da mensagem: o sujeito lá postou no whatsapp, o conteúdo caiu na mão de um blogueiro de uma cidade vizinha e, voilà, em alguns dias a postagem que caiu no meu colo já tinha lá alguns milhares de compartilhamentos e outros milhares de comentários e uma centena de milhares de visualizações.

Em minha inocência e boa fé, imediatamente, fui lá na página do sujeito, uma tal de Salto da Onça Urgente, e informei, muito cordato, que a preocupação dele era legítima, mas infelizmente ele estava fazendo algo errado, pois o Estatuto da Criança e do Adolescente proíbe a divulgação de imagens de crianças em situação de vulnerabilidade, mas fui ignorado pelo administrador da página e devidamente xingado pelos leitores, já que todo mundo entende mais sobre qualquer assunto do que você no facebook.

No textão de minha lavra (que infelizmente se perdeu, por motivos que explicarei mais adiante), eu recapitulava os fatos acima e alertava para a falta de sentido desse tipo de atitude, cuja única justificativa é garantir audiência a quem posta e notoriedade ao personagem do vídeo, mas pouca efetividade para as verdadeiras vítimas. A saber, aquelas três crianças soltas na rua, tarde da noite numa pequena cidade do agreste potiguar. Lembro de ter utilizado o argumento de que, se eu começasse a gritar no meio da rua em Nova Cruz, certamente conseguiria mobilizar alguma autoridade na cidade, nem que fosse para me dar um tabefe, mas em seguida cuidar daquelas crianças, o que seria mais eficaz do que uma postagem indignada numa rede social.

Bom, o caso é que, como bom ativista de sofá, entendo perfeitamente como é cômodo e prático se indignar à frente do computador, ou pelo menos manter a aparência de indignação. O que pouca gente sabe é que, às vezes, dá para agir – sem precisar sair de casa. Então que, meio puto com a situação toda, no mesmo dia em que publiquei o textão, entrei no site do Ministério Público do Rio Grande do Norte – aquele mesmo cujo logotipo viralizou dia desses entre os designers por parecer marca de site de putaria.

Após uma rápida pesquisa, localizei um e-mail de contato do Centro de Apoio Operacional das Promotorias da Criança e do Adolescente e mandei a seguinte mensagem, com o título “Denúncia”:

“Olá,

Esta postagem no Facebook está próxima de 100 mil visualizações, então gostaria de denunciar a vocês a situação dessas crianças na cidade de Nova Cruz/RN, caso vocês ainda não tenham conhecimento, e também questionar se, por si mesmas, a divulgação destas imagens não infringe ao artigo 17 do ECA. Caso positivo, sugiro providências para possibilitar a sua retirada de circulação.

Desde já agradeço pela atenção.

https://www.facebook.com/SaltodaOncaUrgente/videos/1787153808280267/

Alexandro Carlos de Borges Souza – servidor público federal”

Era o mínimo que eu poderia fazer, mas um mínimo bem pequenininho, né? Porém, era o que estava a meu alcance. Nunca recebi sequer uma resposta desse e-mail.

Até a semana passada.

Às vésperas do carnaval, recebi um estranho comunicado, intitulado “notificação para tomar ciência de arquivamento do PA 62/2017”, enviado pela 1ª Promotoria de Justiça de Nova Cruz, com um documento em anexo, que contava uma história curiosa.

O CAOP da Criança e do Adolescente, em Natal, encaminhou para a promotoria de Nova Cruz a minha denúncia. Lá, o promotor Adriano da Gama Dantas tomou duas providências: primeiro, notificou a promotoria de Santo Antônio do Salto da Onça, no intuito de localizar o dono da página no Facebook; em seguida, notificou o Conselho Tutelar para investigar a situação de risco em que se encontravam as crianças. O Centro de Referência Especializado em Assistência Social produziu um relatório sobre o caso.

Eis o que eles descobriram:

Duas das crianças, o menino J., de seis anos, e a menina N., de sete anos, são filhas de Michele (preservo propositalmente o sobrenome dos personagens), que se encontrava presa. Já a terceira menina, A. C., também de sete anos, era filha de Micarla, também encarcerada. Michele e Micarla são irmãs.

A.C. vivia com a avó e dois tios. Por sua vez, J. e N. viveriam com o pai, em Canguaretama. As crianças estavam matriculadas numa creche, mas nunca compareciam às aulas e não possuíam quaisquer documentos. A assistente social percebeu que J. e N. tinha pouco ou nenhum vínculo afetivo em casa, e N. disse que não gostava de morar lá.

O Ministério Público deu um prazo de 30 dias para que fosse feita nova visita, pediu a documentação das crianças e comunicou a situação à promotoria de Canguaretama. As coisas andaram um pouco a partir daí:

J. foi morar com a avó, Irineide, na chamada Favela do Rato, em Nova Cruz. A.C. e N. foram morar com o pai, João Maria, em Canguaretama. Daí os avós e o pai das crianças foram convocados para uma audiência com o promotor, onde ficou decidido que os casos de A.C. e N. seriam encaminhados à promotoria de Canguaretama. O promotor solicitou ao cartório cópias das certidões de nascimento de J. e A.C., para garantir documentação mínima às crianças. Quanto a J., foram asseguradas sua matrícula na rede escolar e inserção em programas socioassistenciais, e foram avaliar a existência de parentes que pudessem se responsabilizar por ele.

No relatório seguinte, todas as crianças estavam matriculadas em escolas e, de acordo com os assistentes sociais, “bem cuidadas”. Os Conselhos Tutelares das duas cidades estavam acompanhando a situação e asseguraram que, até aquele momento, nenhuma das crianças havia sido vista perambulando pela cidade à noite. Porém, após três meses, descobriu-se que as crianças que estavam em Canguaretama haviam retornado a Santa Cruz, após o pai, João Maria, ter sido assassinado. Em situação difícil, com outro filho internado em Natal, a avó, Irineide, não tinha condições de manter as três crianças. Os assistentes sociais encontraram então uma irmã de João Maria, tia das crianças, para receber N. e J. de volta à Favela do Rato. A.C., por sua vez, continuaria morando com a avó.

Com as crianças encaminhadas para a escola e com morada garantida, termina aqui o trabalho do Ministério Público, e o procedimento administrativo seguiu para arquivamento. E algumas ideias me passam pela cabeça ao fim desse relato.

Uma delas é de como falta à Justiça recursos e conhecimentos para coibir crimes digitais. Nesse caso específico, encaminhou-se a denúncia sobre a página no Facebook para a comarca de Santo Antônio, mas como ninguém responsável pela página foi localizado, a denúncia foi arquivada. O engraçado é que fui tentar entrar na página e ela havia sido deletada. Será que o cara ficou com medo da investigação? Gosto de pensar que sim, para meu gáudio.

A outra foi a seriedade com que a situação das crianças foi tratada pelo promotor Adriano da Gama Dantas, a quem rendo aqui as devidas homenagens pelo cumprimento exemplar de suas funções. Deve merecer até auxílio-moradia se tratar todos os casos desse jeito.

Impressiona o aparato estatal que precisou ser mobilizado para cuidar de apenas três crianças em situação de rua, numa cidadezinha de interior, imagine toda a gente envolvida nisso: três promotores, secretários administrativos, conselheiros, assistentes sociais. Há um alto custo por trás da miséria.

Por fim, há uma certa ironia zuckenbergiana por trás disso tudo: se não fosse pelo imbecil que resolveu pegar o celular e sair filmando crianças desamparadas num cu-de-Judas potiguar, certamente aquele e-mail, enviado em 9 de abril do ano passado, não teria movido todas essas peças até esse desfecho meio que em aberto.

Eu, como parte interessada, findei mergulhando, meio que sem saber como, na vida atribulada de J., N. e A.C., que por enquanto parece ter tomado um rumo, ainda que temporário, ainda que incerto, uma história tão besta e comum num lugar pobre como o Rio Grande do Norte que a gente nem consegue mais se indignar – a não ser, claro, que esteja no facebook.

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Alex de Souza é jornalista e escreve aos sábados