Opinião: Não me acostumo…
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Opinião: Não me acostumo...

26 de março de 2018
Opinião: Não me acostumo...

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Uma das razões para falarmos de costumes é a herança recebida de nossos antepassados. Herdamos valores éticos e morais, regras e ensinamentos. Caímos no mundo como um aprendiz que vai tateando e descobrindo as veredas e a derme mundanas. Somos lançados ao mistério da existência como seres portadores de capacidades singulares. Uma delas é aquela da invenção e da novidade. É como se de cada nascimento o mundo herdasse a possiblidade de sua própria renovação. A filósofa Hannah Arendt denomina esta capacidade de milagre. Não aquele da religião, mas o do agere do homem. O milagre da ação. Essa dimensão infinita de nascimentos é o que garante a criação de valores, regras e invenções civilizatórias. E, portanto, nos leva a reconhecer que a mundanidade é um artifício da condição humana. É a condição de inventores que nos leva a não se acomodar com o eterno retorno ao mesmo.

Olhando para o tempo presente, que mundo não devemos construir para aqueles herdeiros e continuadores de milagres? Com certeza um mundo em que nos acostumemos ou nos acomodemos com as barbáries do presente. Com mortes de crianças sírias por bombardeios ou crianças sudanesas mortas pela miséria material e estupidez de conflitos étnicos ou, ainda, com a morte de crianças e adolescentes capturadas pelo tráfico nas periferias das grandes cidades.

Não devemos nos acostumar com fatos que comprometam a condição universal da vida e a continuidade do milagre societal. Como, por exemplo, com o Holocausto que ceifou milhares de vidas ou com acontecimentos bárbaros no Brasil. A ditadura militar ou o último deles, o assassinato da vereadora Marielle Franco no Rio de Janeiro. Uma mulher artíficie que herdou o agere e engendrou pela sua ação política a continuação de milagres. Renovou discursivamente o legislativo carioca ao representar despossuídos do morro e com a tentativa sísifa da sua luta por segurança pública e denúncia das atrocidades da violência policial.

Por isso, não podemos nos acostumar a declarações como aquela da desembargadora do Tribunal de Justiça do RJ, Marília Castro Neves, que ferindo o ethos de uma justiça parcimoniosa afirmou que Marielle pagou com a vida suas dívidas com o Comando Vermelho. A magistrada infectada pelo vírus digital do ódio encenou, pelo Facebook, sua ciberguerra ideológica. A morte de Marielle compromete o movimento civilizatório dos nascimentos porque quebra regras há tempos - imaginava-se - consolidadas. Seu assassinato reatualiza espetáculos de crueldades em praça pública.

É como se estivéssemos assistindo a encenações de forças e domínios poderosos à luz do dia. Este é um teatro de violência pré-moderno, pois como relembra o filósofo coreano Byung-Chul Han, “na era Pré-moderna a violência estava presente por todo lado e podia ser vista no universo cotidiano; era uma parte constitutiva essencial da práxis e comunicação social.” Não podemos agir, civilizatoriamente, tal como o anjo da história de Paul Klee que teima em voltar sua cabeça sempre para o passado. Ao contrário, devemos estar atentos aos movimentos do presente para que o futuro não seja cópia de experiências bárbaras.

Por isso, não devemos nos acostumar com atitudes pré-modernas tais como aquelas que tentam impedir o livre exercício de cátedra nas Universidades brasileiras através de medidas próprias de um estado de exceção. Desnecessário afirmar que a democracia só se torna plena quando existem regras e garantias do livre pensamento e opinião. Não devemos nos acostumar, ainda, com uma paralisação do judiciário em defesa de auxílio-moradia, quando parte considerável dos brasileiros não tem casa própria.

Por fim, não devemos nos acostumar com fanatismos à esquerda e à direita, que tentam fazer da vida extensão das suas ilhas política e moral. Devemos imaginar um mundo no qual sua topologia utópica seja feita de penínsulas habitadas por homens e mulheres insolentes. Um mundo de Marielles!

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