É do povo: torcida do América-RN protesta pelo direito ao futebol popular
Natal, RN 19 de abr 2024

É do povo: torcida do América-RN protesta pelo direito ao futebol popular

29 de abril de 2018
É do povo: torcida do América-RN protesta pelo direito ao futebol popular

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A cerveja estava gelada, o churrasquinho no ponto, uma massa humana vestia vermelho e entoava os gritos de incentivo ao clube do coração. Na Arena das Dunas, o América-RN entrava em campo para a partida decisiva contra o Confiança de Sergipe, na disputa por uma vaga para a Copa do Nordeste de 2019. Por volta das 19h15 da quinta-feira (27), a bola começou a rolar no campo, mas pouca gente viu. Boa parte da torcida americana ainda estava do lado de fora do estádio e lá decidiu ficar até o apito final da partida. O Confiança venceu por 2 a 0 e ficou com a vaga.

Dias antes, quatro torcidas organizadas do clube fizeram uma convocação nas redes sociais para o protesto intitulado #PúblicoZero, em contestação ao preço cobrado pela diretoria do América para o ingresso da partida envolvendo dois clubes que estão nas últimas divisões do Campeonato Brasileiro: o América disputa a Série D e o Confiança a Série C do Brasileirão.

Como forma de se opor ao valor do ingresso, fixado entre R$ 60 e R$ 80 a inteira, as torcidas organizaram uma manifestação popular nos arredores da Arena das Dunas, com venda de bebida e comida a preços populares. Uma faixa em que lia-se “futebol é do povo”, indicava que o protesto também questionava a elitização do esporte mais popular do país, onde a cobrança de altos valores no ingresso tem afastado as torcidas populares dos estádios de futebol.

A partir de um celular, uma projeção improvisada transmitia os lances do jogo, a tela era uma das pilastras do viaduto Quarto Centenário. A poucos metros dali, o América se apresentava para um público de 1990 pessoas, apenas 0,15% da capacidade total da Arena das Dunas. Quantidade muito menor do que as expectativas do próprio clube, que planejava colocar 10 mil torcedores no estádio.

Torcedores do América-RN organizados no protesto assistiram ao jogo embaixo de um viaduto próximo ao estádio

A decisão das torcidas Twitteiros do Mecão, TMV, Portão 5 e Mecão Beer em realizar o protesto detonou uma disputa de versões nas redes sociais entre torcedores e a diretoria do América. Em conversa com a Agência Saiba Mais, a assessoria do clube classificou o protesto como “ilegítimo” e afirmou que deu várias condições para os torcedores adquirirem o ingresso. Em um dos pacotes, segundo informado pelo clube, os torcedores poderiam comprar com 50% de desconto os ingressos para as próximas quatro partidas do clube em Natal, no valor total de R$ 120.

Os torcedores, por sua vez, questionavam o valor avulso do ingresso para a partida da última quinta. Segundo uma nota distribuída por uma das torcidas presentes no protesto, o valor cobrado pela diretoria do América destoava, até mesmo, do valor cobrado pelo ingresso na última rodada da Série A do Brasileiro, em média R$ 55. O valor também foi maior do que o cobrado pelo Confiança no jogo de ida, realizado em Aracaju, onde o ingresso (inteira) foi vendido por R$ 40. Muitos torcedores presentes no protesto possuíam o cartão de Sócio Torcedor do América, que garante acesso ao jogo, mas decidiram participar da manifestação em solidariedade aos torcedores sem ingresso.

“A gente só vê o valor do ingresso aumentando e as pessoas de baixa renda se afastaram de suas torcidas. Para muitos, assim como eu, ir ao estádio é um momento de lazer, é uma satisfação. Tenho um amor incondicional pelo América, mas hoje eu decidi protestar por aqueles que não tem condição de pagar o ingresso. A grande maioria da população do nosso estado ganha menos de um salário mínimo, boa parte da nossa torcida está dentro disso. O futebol brasileiro é do povo, não tem como discutir isso”, afirmou Ailton Oliveira, diretor do movimento popular Portão 5.

Debaixo do viaduto, as músicas cantadas pela torcida lembravam da rivalidade com o ABC, mas também tinham como alvo a diretoria do América, questionada pela atual crise enfrentada pelo clube dentro e fora do campo. Para muitos torcedores ouvidos pela Agência Saiba Mais, a cobrança abusiva do ingresso é uma tentativa desesperada da direção do clube para tentar equilibrar as finanças.

“O futebol vem se tornando apenas mercado e os torcedores vem sendo explorados financeiramente. O futebol não é isso, é uma expressão popular, uma coisa do povo, não pode ser retirado dele dessa maneira, pela exploração do capital. O pai de família que tem as contas para pagar e precisa comprar comida não tem condição de tirar, do salário mínimo, o valor de R$ 60 ou R$ 80 para vir ao jogo. O Presidente tá usando a justificativa do pacote que sai a R$ 120, mas isso está fora da realidade da maioria do povo. Amamos o América, mas essa medida da atual diretoria tirando os custos nas nossas costas não foi bem avaliada pela maioria da torcida“, afirmou Billy Venturino, integrante da torcida Portão 5.

Mesmo com carteiras de Sócio Torcedor, americanos preferiram se juntar ao protesto das organizadas em defesa do futebol popular

Pesquisador revela preço da elitização do futebol: ingressos caros e famílias longe dos estádios

O protesto dos torcedores do América-RN joga luz sobre o processo de elitização do futebol brasileiro, no qual ingressos mais caros e o fim das arquibancadas gerais em estádios têm afastado os torcedores das classes populares dos jogos de futebol em várias partes do país.

Para o Jornalista Irlan Simões, pesquisador ligado ao Laboratório de Estudos de Mídia e Esporte da UERJ, o futebol vem passando por um processo de “modernização mercantilizadora”. Em nível global, organizado como indústria o futebol passa a receber pressões econômicas de diversos atores como as emissoras de televisão e grandes investidores, por exemplo. Segundo ele, de maneira geral, o preço dos ingressos também são afetados por esse processo, pois o estádio passa a ser repensado para se adequar a uma lógica industrial, agora organizando-se como praças multiuso o que demanda um público com maior poder aquisitivo, afastando os setores populares.

“Nesse processo de modernização mercantilizadora do futebol, dentre tantos vieses, está a ideia de transformação do público dos estádios. Não mais uma torcida massiva, efusiva, popular, agora um público consumidor que de fato vai trazer lucro para os envolvidos na indústria do futebol”, conclui o jornalista.

Faixa afixada próximo à Arena das Dunas reivindicava o futebol para o povo

Um dos principais problemas do processo de elitização é a perda da possibilidade de construir relações familiares com o futebol, pois com o aumento do preço, assistir os jogos deixa de ser uma evento para a família afetando, inclusive, a construção da cultura torcedora para as próximas gerações.

¨O primeiro prejuízo visível é que você perde uma geração de famílias por conta do alto valor do ingresso. O filho desse torcedor, que não vai mais ao estádio, vai acabar não aprendendo a cultura torcedora, não vai ter como parte da sua identidade o estádio como um lugar para socializar e para lazer. Então você quebra, de fato, uma cultura que passa de pai pra filho, a cultura do futebol”, afirmou Irlan.

O jornalista Irlan Simões listou, para o site da Revista Caros Amigos, 23 estádios de futebol no Brasil que resistem ao processo de elitização e afastamento das torcidas populares. 

Sem democracia

Os torcedores presentes no protesto também criticavam a falta de democracia interna no América-RN, onde a torcida tinha pouca ingerência em decisões como o preço do ingresso, por exemplo. Para Irlan estancar o processo de elitização do futebol brasileiro passa também pela organização das torcidas em contraponto a uma lógica meramente empresarial dos clubes, com a construção do que classifica como “democracias torcedoras”, onde os associados tem maior participação nas decisões internas do clube. 

“Essa discussão dos preços dos ingressos precisam acontecer também nas instâncias internas dos clubes, infelizmente os clubes brasileiros são muito fechados, funcionam como feudos. Os protestos de público zero são muito importantes, mas é preciso que se aponte soluções institucionais concretas, onde os clubes precisam se abrir para sua torcida”, conclui o pesquisador da Uerj.

Uso da Arena é considerado desvantajoso pela torcida Alvirrubra

Outro ponto questionado pela torcida é o contrato do América com o consórcio que administra a Arena das Dunas, em que o clube joga na Arena e recebe um patrocínio de cerca de R$ 100 mil reais por mês. Informação divulgada pela Folha de São Paulo, em outubro de 2016, dá conta que o América recebeu adiantamento de R$ 2 milhões para mandar seus jogos nos estádio até 2019. O contrato é considerado desvantajoso pois o custo para realizar o mando de campo na arena é muito alto e a média de público nos jogos do time vem caindo nos últimos anos.

Ruim para o América e péssimo para o Rio Grande do Norte. Os técnicos do Tribunal de Contas do Estado afirmam que se o contrato entre o Governo do RN e a concessionária do estádio for mantido, em 15 anos, os prejuízos para os cofres públicos podem alcançar R$ 451,77 milhões . Além disso, o TCE acusa superfaturamento de R$ 100 milhões de reais na construção da Arena.

“É difícil a diretoria do América falar em dificuldades financeiras para o torcedor, quando o clube tem um contrato bem desfavorável com a Arena das Dunas, concessão que recebe dinheiro do estado, comprometendo a arrecadação e o pagamento dos servidores, por exemplo. Apesar de ser um bem de uso público, a concessão acaba submetendo os clubes locais a contratos pouco claros e que jogam esse custo geral para o torcedor, com ingresso que dez anos atrás custava R$ 10 e hoje pode chegar até R$ 80”, conclui o torcedor Renan Mateus de Oliveira.

Foto: Jobson Galdino

Administrada pela OAS, empreiteira investigada na Operação Lava Jato, a Arena das Dunas deu prejuízo, até 2015, de R$ 35, 1 milhões, mas continuava operando positivamente, à época, graças aos repasses do Governo do Estado para o consórcio.

Reportagem da Agência Saiba Mais publicada em 2 de março deste ano informou que, de 2014 a 2017, o Governo do Estado pagou ao consórcio Arena das Dunas Concessão e Eventos S/A a soma de R$ 433.775.824,52. Na rubrica de restos a pagar para 2018 ainda constam R$ 19.186.955,21. Os números estão disponíveis no portal da Transparência do Governo do RN.

O ex-deputado Henrique Alves segue preso preventivamente por conta das investigações de superfaturamento nas obras, o senador José Agripino Maia e o ex-presidente da Câmara Eduardo Cunha também são alvos de investigação pelo mesmo motivo.

“É muito nefasta essa cobrança abusiva, a começar pela própria forma que os estádios foram construídos, relações excusas entre empreiteiras e agentes do estado. Aqui destruiu- se o Machadão sob o pretexto de modernização, o que acabou afastando o torcedor mais popular. É uma modernização às avessas que acaba afastando o principal interessado no futebol: o torcedor”, protestou Júlio Pontes, torcedor que também acompanhava o jogo embaixo do viaduto.

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