Para que servem as leis ?
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Para que servem as leis ?

28 de abril de 2018
Para que servem as leis ?

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Esses meses de março e abril de 2018 vão ficar para sempre marcados na história de nosso país. Como ainda estamos no presente, fica difícil olhar tudo que está acontecendo com a devida perspectiva. Entretanto, somos tomados pela indignação, e buscamos compreender para conseguirmos superar.

O assassinato brutal da vereadora Marielle Franco no Rio de Janeiro é um desses acontecimentos que nos enchem de vergonha e dor. Ela denunciou os abusos policiais e o extermínio de supostos bandidos; ela protestou contra a intervenção militar no Rio de Janeiro; ela protestou contra a violação dos direitos humanos… e tudo isso foi suficiente para ser sumariamente eliminada.

Ao voltar a Felipe Camarão, procurei João para compartilhar com ele o quanto eu estava triste com o que tinha acontecido. João chorou junto comigo por Marielle, e isso eu nunca vou esquecer. Seu choro era diferente do meu, pois para ele a morte injusta e violenta era muito mais presente do que para mim. Eu chorava por Marielle e pelo Brasil ter se tornado objeto de escárnio internacional. Ele chorava por Marielle e por seus amigos e vizinhos que diariamente são de igual forma “eliminados”.

Mas a conversa não parou por aí. João queria saber o que eu achava da prisão de Lula. Devolvi a pergunta, pois sei que o meio religioso que João frequenta não é muito favorável a Lula. Mas ele me surpreendeu com a resposta, demonstrando mais uma vez independência de pensamento em relação aos pastores e irmãos. Ele disse:

– Não tenho certeza de que Lula seja inocente de tudo que aconteceu enquanto era presidente. A gente ouve falar muitas coisas ruins, mas se ele fosse culpado por 1% de tudo que o acusam, bem como à sua esposa que morreu e seus filhos, eles não precisavam fazer essa papagaiada toda com um apartamento que nem é dele para o condenar. Fica parecendo, acrescentou, que ele já estava condenado, só faltava algo para “justificar” (ele fez com os dedos o gesto das aspas) essa condenação.

Concordei completamente com João, mas acrescentei:

– A maior vítima desses juízes que fazem política partidária em seus julgamentos não são os condenados, mas a própria Lei.

– Como assim? Indagou João.

– A lei é uma garantia de liberdade e uma proteção à vida. Lembra-se daquela passagem no capítulo 6 de Deuteronômios que diz mais ou menos assim: “Quando seus filhos perguntarem o que significa essa Lei que o Senhor nos ordenou, respondam a eles que vocês eram escravos no Egito, mas o Senhor tirou vocês de lá com mão poderosa”.

– Eu nunca tinha pensado nisso! Lei parece uma coisa que serve para prender a gente. O povo diz “lei é para ser desobedecida”. Mas olhado por esse lado, você tem razão.

– A Lei teve um papel central na formação do povo judeu como nação que venceu adversidades e continua existindo até hoje. Quando os israelitas associaram a lei à libertação da escravidão é porque escravos não têm lei, não são cidadãos e nem mesmo pessoas. Quem vive num território sem lei, vive debaixo do arbítrio, da opressão e da exploração.

– É, acrescentou João, mas vai depender de quem aplica as leis. Será que basta ter lei? O que adianta a lei sem juízes honestos?

– Você tem toda razão, João. A lei de Israel, tão celebrada como patrimônio de justiça e liberdade, lei que através dos séculos foi sendo aperfeiçoada nos detalhes para garantir crescente probidade jurídica, era uma lei que preconizava acima de tudo a proteção da vida em geral e dos pobres em particular, mas na hora do julgamento de Cristo foi totalmente desprezada. Uma vez eu li na Internet uma comparação entre o que dizia a lei judaica e o que foi feito no julgamento de Jesus. Vou mandar pro seu WhatsApp.

Este é o documento que mandei depois para o João:

JULGAMENTO DE CRISTO. IRREGULARIDADES E ATROCIDADES[1]

QUESTÃOLEI MOSAICA
(HEBRAICA OU JUDAICA)

PROCESSO DE JESUS

TraiçãoA traição era banida.Foi através da traição de Judas que o suposto acusado foi apresentado.
PrisãoNão era prevista a Prisão Preventiva, somente a Prisão em Flagrante Delito.Jesus foi procurado e preso ilegalmente à noite, sem qualquer mandado de prisão.
InvestigaçãoPrevia investigação e acusação, sendo necessário ter conhecimento do crime que lhe era atribuído.Não existiu qualquer investigação.
InterrogatórioO interrogatório era previsto no Tribunal.Houve interrogatório ilegal por Anás que não era o Sumo-Sacerdote do Sinédrio.
ConfissãoA confissão era proibida, porém se associada a duas testemunhas formavam as provas.O presidente do Tribunal – Caifás – vendo o tumulto entre os conselheiros resolveu interrogar Jesus (pela ordem hebraica era obrigatório responder sob juramento de testemunho).
TestemunhasImprescindível, no mínimo, duas testemunhas desde que não houvesse contradição.Foram aliciadas oito testemunhas, porém tão contraditórias que os membros do Tribunal as dispensaram, sendo convocadas mais duas que também não foram concordes.
JulgadoresOs membros do Tribunal tinham que ser notificados oficialmente.Foram convocados com urgência no meio da noite, e ainda, somente àqueles que já tinham se reunido antes para planejar.
ImpedimentosHavia proibição de que qualquer parente amigo ou inimigo do acusado o julgasse.Os membros do Tribunal eram inimigos declarados de Jesus.
JulgamentoNos dias próximos a festas ou feriados era proibido qualquer prisão ou julgamento.A prisão e julgamento de Cristo foram na véspera do sábado de Páscoa, a principal festa dos judeus.
RitoAs assembleias e Comissões dos Tribunais tinham datas oficiais para julgar, sempre segundas e quintas feiras.No julgamento de Cristo foram desrespeitadas as exigências legais ocorrendo na sexta-feira
CompetênciaPara o tipo de crime (blasfêmia) atribuído a Jesus, o Tribunal dos Setenta-Sinédrio era o único competente para julgar.Pôncio Pilatos julgou-se incompetente em ratione materiae (crime de blasfêmia) e ratione loci (Cristo atuava na Galileia) e passa para Herodes (Governador da Galileia) que também não vê culpa.
PrazoEm crimes de pena capital o julgamento que condenasse não poderia ser concluído no mesmo dia.Os julgamentos de Jesus aconteceram em menos de 24 horas.
TipificaçãoEra preciso para caracterizar a Blasfêmia que Cristo pronunciasse a palavra DEUS.Caifás pergunta a Jesus – És o Cristo, o Filho de Deus? Jesus respondeu – Em verdade vos digo: doravante vereis o filho do homem sentado à direita do Todo Poderoso.
VeredictoQuando o veredicto é unânime pela condenação resulta em absolvição.Concluído esse interrogatório por unanimidade proferiram o veredicto: “É réu de morte. ”

João comentou no WhatsApp: “impressionante: uma lei tão boa, mas no momento de ser aplicada no julgamento de Cristo foi totalmente abandonada pelos juízes! E logo no julgamento de Jesus que foi o homem mais justo que existiu!”

Realmente, respondi, a suprema corte judaica (o Sinédrio) possuidora de um sistema jurídico tão avançado para a época, para realizar seu propósito, que era eliminar Cristo, passa por cima de todos os dispositivos legais só para alcançar seu intento.

– Por que eles queriam eliminar Jesus? perguntou João.

– Porque Jesus mostrava o quanto o povo vivia na condição de escravidão. Isso está sempre acontecendo: no Brasil, brancos são absolvidos com muito mais facilidade do que negros; nos Estados Unidos Al Gore teve mais votos que Bush, mas a Suprema Corte deu vitória para o segundo; atualmente assistimos descalabros como juízes aceitando testemunhos dados sob tortura como força de prova, ou até mesmo reportagens de revistas. Uma juíza da Suprema Corte declarando que podia condenar sem provas, e outra que acatava uma decisão dada por seus colegas mesmo que pensasse diferente. Quanto mais a lei é esmigalhada por esses juízes, mais aumenta a escravidão, a morte da cidadania e dos seres humanos reduzidos a nada.

O que mais me impressiona, eu disse para João, é que o sistema jurídico romano era ainda mais sofisticado do que o sistema judaico. Quando os líderes do Sinédrio mandaram Jesus para o governador romano, Pôncio Pilatos, para que esse aplicasse a pena capital, ele também ignorou totalmente os preceitos jurídicos e mandou crucificar Jesus. E olha que durante as sessões de julgamento, por três vezes ele declara a inocência de Cristo, e, antes de pronunciar a sentença final, manda açoitá-lo, o que era terminantemente proibido por lei, para ver se com isso se livrava da fúria dos líderes de Israel. Esse e outros procedimentos inadequados foram tomados, de modo que, também a sofisticada lei romana de nada adiantou para proteger um réu inocente diante da obsessão dos políticos de se livrar de uma pessoa perigosa para o sistema.

Isso quer dizer, meu caro João, que de nada adianta um sistema jurídico sofisticado se seus executores não tiverem, acima de tudo, amor à justiça, à verdade e à vida. Isso quer dizer que de nada vai adiantar a competência intelectual desses profissionais do direito se seu compromisso último não for com a liberdade, a dignidade e a realização do seu semelhante.

Na hora que esses profissionais da justiça colocam sua ganância por poder e dinheiro, ou os interesses de um grupo político e social ao qual pertencem, na frente da justiça, e da vida das pessoas, eles estarão destruindo não apenas a própria lei que juraram defender, mas jogando ao abandono a vida dessas mesmas pessoas.

[1] Durvalina Maria de Araújo. Advogada e Membro do Instituto de Ciências Criminais (www.viajuridica.com.br)

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