Esse não é mais um discurso feminista
Natal, RN 19 de abr 2024

Esse não é mais um discurso feminista

15 de maio de 2018
Esse não é mais um discurso feminista

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Desde que decidi mudar de Natal para Brasília, há quase um ano, pensava em escrever sobre esse tema, mas até hoje não me sinto de fato capacitada a fazer um discurso feminista, assim como o amigo e colega de faculdade Patrício Júnior, que outro dia escreveu aqui um texto bem melhor que esse que você começa a ler agora.

Portanto, o movimento feminista está avisado de que não tenho lá o conhecimento necessário nem mesmo o ativismo que gostaria para falar em nome dessa galera linda, mulheres incríveis e que admiro demais pelo engajamento e pela coragem.

Ainda que a exigência semântica e o receio de cometer certas gafes me impeçam de fazer aqui um discurso feminista, há algum tempo sinto a necessidade de escrever o que talvez pudesse chamar de “desabafo”.

São certas situações e discursos, dos outros, que fazem parte do meu cotidiano e que me incomodam, mas que eu nunca soube exatamente como contar, porque não é minha intenção ferir quaisquer eventuais personagens desses relatos.

Até porque, em algum outro momento da minha vida, talvez eu mesma fosse capaz de reproduzir esse discurso (somos humanos, afinal), ou de, quase como um reflexo, cometer alguma gafe que poderia ser vista como machista, e, sem querer, acabar como personagem desse depoimento.

Motivo pelo qual todas as identidades estão devidamente protegidas e, se você acha que é um desses personagens, ainda lhe peço aqui licença para contar (sem o menor rancor, porque sei que não houve intenção), apenas pelo caráter pedagógico do relato.

Mas acredito que após seis parágrafos de introdução, o leitor (ainda que seja um personagem) tenha aberto o coração para compreender a real finalidade desse desabafo que, lhes prometo, não vai doer ou causar polêmica.

Só vai fazê-lo compreender uma realidade: uma mulher tem como respirar e viver, sem precisar de um homem ao lado. E isso não quer dizer necessariamente que a escolha sexual dela seja outra, mas apenas que, por incrível que pareça, hoje em dia, a vida dela não depende de um camarada que a sustente.

Houve até um tempo sombrio e esquisito, mas não muito remoto, em que, quando casada, o CPF da mulher era, inclusive, o mesmo do homem, como se ela não tivesse direito sequer de ser uma “pessoa física”.

Por termos ultrapassado essa época é que hoje me incomoda, mais ainda, que alguns julgamentos alheios da nossa vida acabem fazendo voltar àquele tempo sombrio e esquisito. Não que me importe com os julgamentos alheios da minha vida, mas o incômodo está além da importância que damos às coisas.

Foi ao decidir voltar a morar em Brasília, com Marina (minha filha, hoje com 14 anos), que senti a vontade de um dia escrever esse texto, que foi tomando forma na minha cabeça, e, antes que virasse um câncer, transformei nesse desabafo.

Deixei Brasília em 6 de junho de 2006, quando escolhi me separar do pai da minha filha e não depender dele após a separação, mas humildemente retornar, temporariamente, à casa dos meus pais, em Natal, já que estava desempregada.

Foram onze anos de praia, banhos de mar, dançar ao som de Sangue Blues, do Dusouto, felicidades, dores, perdas, conquistas, mortes, vidas, como o pôr-do-sol e o nascer, trabalho, diversão, cervejas, ressacas, amores, amizades, um casamento, uma separação, e até a experiência de casar de novo com a mesma pessoa e me separar novamente, apesar de manter até hoje uma amizade sem igual com ele.

Tenho a impressão de que a vida possui ciclos e o meu em Natal havia acabado. Concomitante com essa sensação, surgiu a oportunidade: uma vaga para trabalhar em Brasília e bastava que eu tivesse vontade. O desejo de encarar um novo desafio e começar um novo ciclo, com centenas de possibilidades, me encantou, assim como a chance de Marina poder voltar a conviver com o pai.

Mas quando eu disse isso em voz alta pela primeira vez, seja no trabalho ou no meu círculo de amizades, boa parte das pessoas, se não perguntaram expressamente, pensaram que eu estava voltando pro meu ex-marido; e não era o que me casei em Natal (e com quem vivi por bem mais tempo), mas o pai de Marina, com quem sequer convivia desde a separação, onze anos antes.

Outros imaginaram apenas que eu tivesse me apaixonado por um camarada que morava em Brasília e decidi vir pra cá, por amor. Até que eu gostava dessa versão, se não estivesse escondido nas entrelinhas um certo julgamento de que, para uma mulher decidir mudar de vida assim, só podia ser por causa de “uma rôla”. Rsrsrs...

Não era essa a primeira vez que me deparava com essas doses camufladas de machismo. Quando fui morar em Natal, em 2006, passei num concurso público, no final de 2007, para o cargo que assumi em 2009. Essa conquista me trouxe até aqui, no ano passado. Mas por volta de 2012, 2013, meu marido na época passou num concurso em Mossoró. Todos me perguntavam, em tom de cobrança: “e agora? Você não vai mudar pra Mossoró?”

Nada contra aquela cidade, que muito se assemelha ao clima desértico de Brasília, e muito menos contra o meu ex-marido, a quem respeito muito e por quem tenho muito carinho e admiração. Mas porque eu, que já era concursada desde 2009 em Natal, tinha que mudar para o interior, apenas pelo meu marido ter passado num concurso lá, quando todos costumam fazer o caminho inverso, de lá para a capital?

Por coincidir com o período em que reatamos, após passarmos sete meses separados, houve ainda quem imaginasse que eu estava voltando apenas por isso, para dar o golpe do baú, quando essa questão econômico-financeira nunca foi motivo pra eu amar ou não alguém.

Quase três anos depois de me separar, não é raro perceber o espanto das pessoas, desde um motorista de uber que se mete a psicólogo, até o servidor do cartório que pergunta meu estado civil, quando digo, tranquilamente, que sou solteira. Outro dia, ouvi um comentar que não acreditava que eu era solteira, já que eu parecia tão calma! rsrsrs...

Foi a gota d'água, mas eu não perdi a pose, nem a paciência; até agradeci a imbecilidade do quase elogio que ele quis me dar. E cozinhei tudo em fogo baixo pra servir neste momento, aqui. Ainda que a vontade fosse dizer que "o fato de estar solteira, não quer dizer que eu não trepo, porra!"

A verdade é que quase ninguém acredita que uma mulher pode respirar, viver, e até ousar ser feliz, sem ter um homem que a sustente ou “uma rôla” que a motive a seguir em frente; que pode ser independente, e, mesmo mãe, solteira, se permitir viver um novo desafio, assim como muitos homens fazem, sem qualquer questionamento ou dúvida.

No entanto, não os culpo, porque por muitos anos eu mesma cultivava, como maior temor, o de morrer só. Mas posso dizer hoje que é fabuloso ter a liberdade de ser você mesma, dona das próprias decisões e senhora de si. Não quer dizer que não quero ou sonho com um novo amor. Só o imagino como algo que venha acrescentar felicidade à minha vida, como em todos os relacionamentos que já vivi, e só aceito se assim for.

E quanto a morrer só, ainda que não esteja casada, o dia em que eu deixar de respirar, que com certeza não será por não ter um homem ao meu lado, estarei envolta das mais incríveis lembranças dos amores, das amizades, da minha filha, do mar, de felicidades, das diversões, do pôr-do-sol, das danças, de todos os momentos que fizeram da minha vida um musical.

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