O religioso, os religiosos
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O religioso, os religiosos

12 de maio de 2018
O religioso, os religiosos

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A consciência de Deus é autoconsciência; o conhecimento de Deus é autoconhecimento. A religião é o solene desvelar dos tesouros ocultos do homem, a revelação dos seus pensamentos íntimos, a confissão aberta dos seus segredos de amor.   Ludwig Feuerbach

O sentido dessa coluna é trazer para o Saiba Mais um pouco do universo religioso, visto que, esse aspecto é pouco enfocado sistematicamente na imprensa. Um doutorando do Programa de Pós-graduação em Ciências Sociais fez um levantamento de teses sobre o fenômeno religioso nos últimos 20 anos, e elas estão concentradas nas disciplinas de sociologia e antropologia, mas praticamente inexistem na ciência política. Entretanto, o fator religioso tem ocupado cada vez mais o centro dos processos eleitorais brasileiros, e está afetando não só o universo cultural como os espaços do poder político.

Essa atitude dos cientistas políticos esconde um ranço racionalista em sua versão marxiana (parabéns, Karl, por seu ducentésimo aniversário completados essa semana!). Para esse pai fundador da sociologia e da economia política “o sofrimento religioso é, ao mesmo tempo, expressão de um sofrimento real e protesto contra um sofrimento real. Suspiro da criatura oprimida, coração de um mundo sem coração, espírito de uma situação sem espírito: a religião é o ópio do povo”.

Foi, entretanto, o que ele disse a seguir que causou, no meu entender, um certo desprezo por parte dos cientistas políticos ao tema da religião:

A crítica arrancou as flores imaginárias da corrente não para que o homem viva acorrentado sem fantasias ou consolo, mas para que ele quebre a corrente e colha a flor viva. A crítica da religião desilude o homem, a fim de fazê-lo pensar e agir e moldar a sua realidade como alguém que, sem ilusões, voltou à razão; agora ele gira em torno de si mesmo, o seu sol verdadeiro. A religião é nada mais que o sol ilusório que gira em torno do homem, na medida em que ele não gira em torno de si mesmo. (MARX, Karl. Crítica da filosofia do direito de Hegel; São Paulo: Boitempo Editorial, 2005: 146)

– Para que ficar falando das flores em torno das correntes? Arranquemos as correntes, e não haverá mais necessidade de flores.

Sabemos, entretanto, que historicamente isso não se confirmou, apesar dos estados socialistas acreditando piamente nessa teoria, terem dado uns empurrõezinhos na realidade, proibindo, muitas vezes, todas as manifestações religiosas. De qualquer forma, com ou sem empurrão, a religião continuou florescendo independente do adubo ou não destas ou daquelas correntes.

Neste período tenebroso em que estamos vivendo no Brasil, focalizar a religião passou a ser uma prioridade. Preferimos, para isso, escutar UM religioso cujo nome é João. O que separa um religioso de milhões de religiosos? Absolutamente nada, apesar de serem absolutamente distintos. O uno impõe sua realidade ao múltiplo, e não o contrário.

Copio aqui um trecho do artigo “Notas sobre o Fígado” de Michel Laub, publicado na revista Piauí de março de 2018:

Não jogar para a torcida é expressar não o que a singularidade poderia representar, e sim o que ela provavelmente é. Algo que, por contraste, foi definido pelo narrador de Submissão, de Michel Houellebecq: “Como os seres humanos possuem em princípio, à falta de outra qualidade, uma idêntica quantidade de ser, todos estão em princípio mais ou menos presentes [nos livros]; porém não é esta a impressão que dão […] páginas a fio, […] [que] sentimos ditadas mais pelo espírito do tempo do que por uma individualidade própria, um ser incerto.”

Quando eu li esse trecho, João me veio à mente. Sua individualidade (preferiria dizer subjetividade) resvala constantemente ao espírito do tempo, e se mostra constrangedora, surpreendente… É essa deriva do sujeito que torna o múltiplo tão complexo, um devir que afronta todas as concepções de identidade.

Como eu sempre digo para meus alunos: identidade é algo que o outro impõe sobre você, como por exemplo um chifre; ninguém nasce com um, é contemplado com um. Para que não continuemos a atribuir “identidades” a torto e a direito no mundo ao nosso redor, precisamos retornar ao uno, e permitir que ele nos tome pela mão e nos mostre as infinitas possibilidades do múltiplo.

No caso da religião, o uno já sofre pressões de todos os lados para se conformar a uma multiplicidade rígida, conceitual, tão ideal como as figuras metafísicas de Platão. O resultado dessas múltiplas pressões é um sujeito muitas vezes reduzido a um mero androide repetidor de comandos gravados. A quantidade de tempo que isso acontece no universo interior de um sujeito vai depender da longevidade dessa máquina.

No mais das vezes, entretanto, esse múltiplo atravessamento de identidades produz seres multicoloridos como os arlequins, e jamais pretos e brancos como os pierrôs. Porém, como os gestores autoritários de identidades fechadas, os cientistas sociais, muitas vezes, fazem o mesmo: querem que seu universo seja composto por um exército de supostamente iguais.

“Fica impossível pastorear um rebanho assim”, replicam os sacerdotes. “Não temos como conhecer essa realidade”, concordam os cientistas. Não queria ser aquele que vem lhes dizer isto, mas vamos lá: ambos estão completamente equivocados. O múltiplo está no uno, e o uno é o múltiplo. No exato momento que se disjunta esses polos, tudo desmorona, seja no pastorado, seja na ciência.

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