“A democracia não está em questão”… Acho que sim Cármen!
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“A democracia não está em questão”... Acho que sim Cármen!

2 de junho de 2018
“A democracia não está em questão”... Acho que sim Cármen!

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(...) o discurso atual da existência de uma “crise do Estado democrático de direito” tem uma função docilizadora, tem a finalidade de ocultar que os direitos e garantias individuais, o conteúdo material da democracia, não servem mais de obstáculo ao exercício do poder, em especial do poder econômico (Rubens Casara em entrevista à Revista Cult)[1].

Não há escolha de caminho. A democracia é o único caminho legítimo...”. Essa foi uma das passagens que iniciou a sessão plenária do STF na última quarta-feira (30 de maio de 2018), em pronunciamento lido pela Ministra Cármen Lúcia, sua presidente.

Citando a crise que atravessa o país, mesmo sem mencionar a paralisação dos caminhoneiros que ali já durava 10 dias, a Ministra reforça em seu discurso preocupação com os pedidos de retorno aos períodos totalitários, muito embora o movimento de paralisação dessa categoria não esteja diretamente associado ao clamor de uma intervenção militar. Ainda assim, observa-se que, desde 2013, aos protestos de maneira geral, logo os adeptos dessa ideia nefasta fazem eco para reivindicar um passado do qual seguimos enxugando sangue e lágrimas.

Num cenário de crescente ameaça à democracia, é típico nos discursos oficiais a defesa da ideia de que as instituições devem se manter fortes, preservando o Estado de Direito e ancorando suas bases nos princípios republicanos. Mas o que o pronunciamento da Ministra diz sobre um Judiciário tímido em relação aos grandes golpes que a democracia vem sofrendo nos últimos anos? De que democracia estamos falando?

Para Boaventura de Sousa Santos, nossa atual democracia, em tempos de globalização, caracteriza-se como “instrumento hegemônico” de uma política liberal-global. Nesse sentido, necessário se faz uma política de ‘contra-hegemonia’, ou seja, uma repolitização e uma radicalização dos direitos humanos e da democracia. Mais do que pensar em ‘alternativas democráticas’, devemos buscar um ‘pensamento alternativo de alternativas’, ou seja, buscar uma ‘democracia alternativa’.

Segundo o autor português, infelizmente vivemos em um cenário muito restrito em termos de conceitos democráticos. Se antes existiam várias definições para a democracia, nos últimos 20 anos esta tipologia vem se reduzindo ao único conceito difundido pela globalização: a democracia liberal-representativa. Portanto, necessitamos recuperar a ‘demodiversidade’ e fazer com que a democracia seja mais democrática, abarcando os vários conceitos e experiências possíveis.

Essa reflexão se torna por demais necessária quando é evidente a intensa contaminação do político pelo econômico, contexto no qual nosso país se insere sem reservas e a paralisação dos caminhoneiros revela escancaradamente. Aqui, falamos de um evento de crise patrocinado por empresas de transporte, de um movimento indiferente às questões que realmente afligem o povo brasileiro, de um segmento sem unidade de pensamento e pouco organizado politicamente (os caminhoneiros) e de um debate midiático que oculta as determinantes cruciais para os altos custos do combustível e as implicações que a entrega da Petrobrás ao mercado estrangeiro têm na conta do consumidor.

A grande questão que se coloca, portanto, é que se a crise social, política e econômica que esse cenário revela foi forjada no contexto de uma democracia frágil e vulnerável às intervenções da economia liberal e global, sua solução não pode ser encontrada mediante as alternativas deste mesmo sistema.

Nesse aspecto, o Professor da Universidade de Princeton Richard Falk, no livro “A Globalização Depredadora”, examina o modo como as forças de mercado dominam a cena política que despolitiza o Estado, pondo o neoliberalismo como a única mentalidade possível.

Num clima ideológico no qual a política e ideologia neoliberal assumem protagonismo, o Estado se revela frágil para gerir a economia, o equilíbrio entre as forças sociais se altera e os esforços pela promoção do bem-estar dos defavorecidos é uma agenda de poucos.

Sobre isso David Held, em seu livro intitulado “Modelos de Democracia”, realiza um trabalho de fôlego sobre a teoria democrática desde sua experiência clássica até os dias atuais. Em seu estudo assinala os elementos e forças que interferem e limitam a liberdade dos governos, pautando seus marcos legais e suas esferas de decisão. O autor ainda questiona os pontos de referência da teoria democrática liberal, além de procurar assinalar para novas pautas de deliberação e participação.

Hoje, é visível o comprometimento extremado da capacidade instrumental de nosso Estado no domínio da política e da economia: as políticas monetárias internacionais fragilizam a capacidade individual de controle estatal sobre sua política econômica interna, a transnacionalização das empresas também enfraquece o controle dos governos sobre uma base produtiva capaz de gerar receita interna satisfatória, assim como os mercados financeiros estão completamente fora de qualquer controle governamental local.

Assim, importa que qualquer análise sobre o cenário atual, bem assim sobre o papel do Judiciário na defesa da Constituição e da democracia, ponha em causa as antigas hierarquias e as novas desigualdades de poder, riqueza, privilégios e conhecimento. Ao Judiciário se impõe incluir nos seus marcos interpretativos o antagonismo que a pauta do mercado imprime para uma democracia verdadeiramente democrática, que tanto afeta os conceitos sobre ela construídos, quanto interfere na própria hermenêutica do fenômeno e do que lhe causa ameaça. A percepção do papel do Judiciário na defesa da democracia exige, portanto, outros padrões de pensamento e respostas criativas para diferentes formas de regulação e controle democrático.

Por isso, uma ‘democracia democrática’ exige formas originais de organização estatal, novos procedimentos de produção de poder e diferentes princípios de legitimação. Esperamos que a democracia a que se propõe o Judiciário defender seja ressignificada, que sua postura não seja de mera preocupação retórica ou que a esperança exaltada pela Ministra Cármen Lúcia não se contente com tão pouco. O Judiciário, aqui, não pode seguir sendo um instrumento de ordenação da lógica do mercado e garantidor de uma ‘democracia domesticada’. Como diz Boaventura de Sousa Santos (1997, p. 30),

Este projecto pode parecer demasiado utópico. Mas, como disse Sartre, antes de ser concretizada, uma idéia tem uma estranha semelhança com a utopia. Seja como for, o importante é não reduzir o realismo ao que existe, pois, de outro modo, podemos ficar obrigados a justificar o que existe, por mais injusto ou opressivo que seja (...).

Referências:

FALK, Richard. La Globalización Depredadora: una crítica. Madrid: Siglo XXI de España Editores, 2002.

HELD, David. Modelos de Democracia. Madrid: Editorial Alianza, 2007.

SANTOS, Boaventura de Sousa. “Por uma concepção multicultural de direitos humanos”, in Revista Crítica de Ciências Sociais. Coimbra, Nº 48, Junho de 1997, p. 11-32[2].

SANTOS, Boaventura de Sousa. “Os Processos da globalização”, in SANTOS, Boaventura de Sousa (org.), Globalização: fatalidade ou utopia? Porto: Edições Afrontamento, 2001[3].

SANTOS, Boaventura de Sousa. Globalización y Democracia. Conferência apresentada no Fórum Social Mundial Temático “Democracia, Derechos Humanos, Guerras y Narcotráfico”, em Cartagena das Índias, Colômbia, 16-20 Junho de 2003. Disponível em: http://www.ces.uc.pt/bss/pt/documentos/cartagena.pdf.

[1] https://revistacult.uol.com.br/home/rubens-casara-estado-pos-democratico/

[2] Também publicado em SANTOS, Boaventura de Sousa (org.), Reconhecer para libertar. Os caminhos do cosmopolitismo multicultural. Porto: Edições Afrontamento, 2004.

[3] Disponível também em versão online in http://www.eurozine.com/articles/2002-08-22-santos-pt.html

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