Provincianos incuráveis
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Provincianos incuráveis

14 de junho de 2018
Provincianos incuráveis

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A julgar pelas perguntas que são feitas aos presidenciáveis nas sabatinas e entrevistas que se espalham pela Internet chego a pensar: o brasileiro realmente não conhece o mar.

Mesmo que a maioria da população do país permaneça espremida em grandes cidades litorâneas, diante da imensidão azul do atlântico sul, meus conterrâneos parecem padecer de um provincianismo incurável. Mesmo que já tenham visto o oceano, mesmo que se acostumem a mergulhar seus corpos nas águas salgadas desse Atlântico que construiu o Brasil, com as navegações de Portugal e o tráfico negreiro na África, não parecem entender que o mar é uma estrada, e que é essa estrada que nos oferece um horizonte para um mundo diverso, cheio de riscos e possibilidades.

Retirando uma ou duas perguntas sobre a Venezuela, formuladas geralmente para constranger candidatos de esquerda, não se vê sombra de discussão sobre temas de geopolítica nessa campanha. Nada sobre a integração do bloco euroasiático capitaneado pela aliança russo-chinesa; nada sobre as pretensões da Colômbia em fazer parte da OTAN; nada sobre o desmantelamento da União Europeia; nada sobre os investimentos chineses na África e os 70 bilhões de dólares que Pequim vai desembolsar para reabrir a famosa “rota da seda”. Talvez por isso a gente não consiga compreender a conexão entre as ameaças norte americanas de romper seu acordo com Irã e o preço da gasolina no posto da esquina e, ainda de quebra, consegue ouvir por aí, sem ter uma crise de riso, jornalistas afirmando que a reunião de cúpula em Cingapura entre Donald Trump e Kin Jong-Un teria sido a “reunião do século”.

Não é de se espantar que num contexto como esse, questões sobre política externa sejam tão minúsculas e focadas sempre em repetir o desconhecimento sobre o mundo e a subserviência militante que marca a política externa brasileira na era Temer.

Padecendo de uma monoglotia patológica, a maioria de nossos analistas políticos tem imensas dificuldades de compreender o que ocorre além de nossas fronteiras, limitando-se a repetir os editoriais do New York Times e do The Washington Post. Eles não tem a mínima ideia, por exemplo, que desde Setembro passado Vladimir Putin, o mesmo que vai abrir a copa do mundo essa semana em Moscou, costura um acordo entre as duas Coreias. Com a promessa de construção da sonhada Trans-Koeran Railway, que atravessaria a Coreia do Norte, e ligaria Seul à ferrovia transiberiana, Putin fez os olhinhos puxados dos executivos da Hyundai, Sansung e LG brilharem com a possibilidade de um caminho mais curto e barato para seus produtos chegarem ao mercado euro-asiático.

Foi esse matutismo atávico, esse provincianismo obsessivo que nos confina em nossos sertões interiores, que nos obriga sempre a olhar o próprio umbigo, que nos fez encarar políticas externas autônomas (como a do ex-chanceler Celso Amorim) como delírios ideológicos.

Hoje, diante de uma evidente decadência da liderança norte americana, paralisada pela bipolaridade de seu presidente, e da ascensão do bloco russo-chinês, o cenário planetário se torna cada vez mais um território de jogadas arriscadas; um campo para a construção de estratégias inteligentes em meio a um ambiente cada vez mais beligerante que, no julgar de alguns, se assemelha bastante ao cenário que antecedeu à primeira grande guerra mundial cem anos atrás.

Sem uma compreensão dessa dinâmica, sem entender a urgência norte americana de recuperar o controle sobre o seu próprio quintal (a América Latina) e sem perceber que o estado letárgico a que foi lançando com essa crise que não parece ter fim, atende a um projeto de desmantelamento de sua própria liderança regional, esse imenso e amatutado gigante chamado Brasil só consegue se imaginar com o tamanho que tem quando vence um jogo nos gramados de futebol.

No fim das contas, quem sabe uma copa do mundo na Rússia nos faça lembrar, pelo menos por um mês, que existe algo a mais no planeta Terra do que os parques de diversão em Miami e o jornalismo chapa branca em Washignton.

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