Jair Bolsonaro ou a revanche do machismo
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Jair Bolsonaro ou a revanche do machismo

12 de agosto de 2018
Jair Bolsonaro ou a revanche do machismo

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Uma das maiores revoluções ocorridas no século XX foi realizada pelas mulheres. Fruto dos vários movimentos feministas, as mulheres conseguiram conquistar mudanças significativas nas chamadas relações de gênero, ou seja, nas relações entre o que a sociedade define como sendo o masculino e aquilo que ela define como sendo o feminino. As relações de gênero, embora tenham como referente e ponto de partida as diferenças biológicas entre o homem e a mulher, entre o macho e a fêmea, portanto, as diferenças dos órgãos genitais e daquilo que se chama de sexo, são majoritariamente produto das culturas humanas, dos modelos que essas culturas constroem para modelar os corpos, os gestos, os comportamentos, os valores, para definir as condutas aceitas e interditadas para cada corpo sexuado. Foi graças ao caráter cultural, social e histórico dos modelos de gênero, das relações de gênero, que as mulheres, através de suas lutas, conseguiram conquistar mudanças significativas nas maneiras de ser, conceber e pensar como deveria se comportar, como deveria ser um corpo feminino. Se o feminino e o masculino fossem uma imposição da natureza ou uma atribuição do divino, como querem aqueles que se dizem adversários do que chamam de ideologia de gênero, as mudanças introduzidas nas relações entre homens e mulheres jamais teriam sido possíveis.  A hostilidade desses grupos aos chamados estudos de gênero, grupos que contam com a participação de algumas mulheres, é a prova de que o gênero não é natural, não é definido no nascimento, seja por parte de uma biologia determinista, seja por parte de uma divindade autoritária e onipotente. Se esses grupos são hostis é, justamente, porque as lutas feministas, que são comumente ridicularizadas por esses grupos, foram capazes de provocar profundas alterações nas hierarquias de poder e nas relações de dominação no campo do gênero e da sexualidade.

Desde o final do seculo XIX, as mulheres empreenderam através de suas lideranças, muitas vezes hostilizadas, ridicularizadas, perseguidas, violentadas, lutas específicas que foram mudando o lugar das mulheres na sociedade, que foram ampliando as possibilidades de escolhas para as mulheres em campos tão diversos como o trabalho, a educação, as relações afetivas e sexuais. Como o masculino se define em relação ao feminino, cada mudança introduzida pelas mulheres em seus modos de existência afetaram diretamente os homens. Cada conquista das mulheres significou uma rearrumação nas relações e hierarquias entre homens e mulheres. Se os homens mostraram, quase sempre, muita resistência ao feminismo e às feministas isso se deve ao fato de que percebiam que as mudanças propostas pelas mulheres abalariam os privilégios e as prerrogativas tidas como dos homens. As mulheres foram avançando no sentido da reivindicação da igualdade de direitos e de deveres entre homens e mulheres, o que significou a contestação e a ameaça às hierarquias e desigualdades vistas e ditas como naturais entre o feminino e o masculino. Cada mudança que foi conquistada pelas mulheres exigiu dos homens uma remodelação das definições e formas de ser masculino.

Ao longo de toda a história, as relações entre o masculino, na diversidade de suas formas (pois não existe e nunca existiu uma única maneira de ser masculino) e o feminino, também na diversidade de suas formas, foram marcadas por disputas, tensões, conflitos, afetos, desejos, alianças, hierarquias, opressões e subordinações. Os perfis de gênero, ou seja, as formas com que dadas sociedades e culturas definem o que é ser feminino e o que é ser masculino, sempre estiveram sujeitos a transformações, mudanças, acomodações, redefinições, releituras, como tudo que é humano, como tudo que é temporal e histórico. A tentativa de grupos reacionários, notadamente masculinos, de retirar as relações de gênero do social e do cultural para alojá-las na natureza, nasce, inclusive, de uma visão falsa e equivocada da própria realidade natural.

A natureza é tão sujeita a mudanças, a mutações, a reorganizações, a reconfigurações quanto a realidade social e cultural. A natureza, ao contrário do que pensam muitos, não é estática, imóvel e fixa, ela está em constante movimento e, nesse movimento, gera, inclusive, formas de vida inviáveis, monstruosas, disformes, segundo os valores e padrões de nossas culturas. No campo da sexualidade, por exemplo, os casos de intersexualidade (o que antes se denominava de hermafroditismo), ou seja, pessoas que nascem com a presença de traços dos genitais dos dois sexos ou mesmo possuem composição hormonal ou configuração genética que torna o corpo indefinido ou intermediário entre o que chamamos de dois sexos, é muito mais comum do que se pensa. A natureza, ao contrário do que quer os conservadores e moralistas, não é determinista, ela é probabilística, como todo geneticista sabe. Mesmo um aluno de ensino médio que tenha estudado genética se dará conta que a natureza não é uma máquina, que ela joga com dados e as combinações e configurações dos corpos podem ser variadas, inclusive existindo a possibilidade daquilo que uma dada sociedade e cultura definem como anormalidade.

Os homens, percebendo o perigo para o poder que tinham na sociedade, reagiram de várias maneiras aos avanços femininos. Infelizmente, como toda grande transformação social, a revolução feminina não ocorreu sem derramamento de muito sangue. Os homens, formados e educados pelo machismo, ou seja, pelo discurso e pelas práticas que legitimam, explicam e naturalizam a dominação masculina, reagiram, muitas vezes, de forma violenta e sanguinária diante da rebeldia e da contestação de seus privilégios e prerrogativas por parte das mulheres. Muitas mulheres foram violentadas e assassinadas por não aceitarem o papel que a tradição social a elas designava. Muitas heroínas anônimas contribuíram para que a pregação feminista se fortalecesse e conquistasse, paulatinamente, uma presença mais destacada no interior da cultura e das sociedades ocidentais. Foi no embate duro, não apenas no espaço público, mas também no espaço privado e doméstico, nos quais deveriam estar confinadas, que as mulheres foram conquistando o direito ao trabalho (ainda que remunerado de forma discriminatória), o direito à educação (embora em carreiras específicas e tidas como femininas, para só depois tomarem de assalto a cidadela das profissões de maior prestígio social e maior remuneração), o direito de ser dona de seu próprio corpo, de não ser reduzida à condição de objeto do desejo e do prazer de um outro que não a levava em consideração, o direito a controlar sua própria vida sexual, de expressar seus desejos e fantasias eróticas,  de ser dona de seu próprio nariz, de não ter como único destino o casamento e a maternidade. Todas essas conquistas significaram cobranças de modificação de comportamento, atitude, mudanças subjetivas, de valores e costumes por parte dos homens, que reagiram através da violência simbólica (com a ridicularização e deboche das lutas e lideranças feministas) ou através da violência física (cárceres privados, humilhações cotidianas, espancamentos, até mutilações e assassinato).

Todas as pesquisas de intenções de voto apontam para o fato de que o eleitorado do candidato a presidente Jair Bolsonaro é majoritariamente masculino, havendo uma distribuição bastante homogênea entre as faixas etárias, mas com predominância de homens na faixa entre 25 e 35 anos. Se quisermos entender a adesão surpreendente a um candidato medíocre e sem propostas como Bolsonaro (o debate no programa Roda Viva mostrou o quão despreparado e o quanto falta de inteligência e de acuidade mental ao coronel) temos que tomar como um dos elementos de explicação o que eu nomearia de revanche do machismo. Diante de um embate cada vez mais desvantajoso com o discurso feminista que, com o próprio avanço das mulheres em ocupar posições socialmente destacadas, ganha legitimidade e aceitação social cada vez maior, o discurso machista foi se sentindo acuado, desligitimado e cada vez mais ameaçado. Bolsonaro, com a sua verve abertamente machista e antifeminista, com suas atitudes e práticas de enfrentamento e combate com as mulheres que galgaram posições de poder, como o entrevero com a deputada do PT Maria do Rosário, onde utilizou toda a bateria de enunciados machistas ao seu dispor, aparece como um representante do discurso machista, capaz de retirá-lo da defensiva e colocá-lo outra vez na ofensiva em seu embate com as propostas feministas. Bolsonaro deixa claro, em cada posicionamento, que não apenas não gosta de mulheres, principalmente se elas forem poderosas e feministas, como não tolera o feminino, daí sua aversão a homossexualidade, notadamente à homossexualidade masculina que, em sua cabeça machista, representa uma capitulação do macho diante do feminino.

O misterioso apoio a Bolsonaro não é, portanto, tão misterioso assim. Ele representa forças e discursos, desejos e sentimentos, valores e costumes presentes em nossa sociedade, em seu cotidiano, que se mantinham em certa invisibilidade pela perda de legitimidade social e midiática. Bolsonaro, com suas atitudes espalhafatosas e estudadamente agressivas, com seu discurso assumida e politicamente incorreto, trouxe novamente para a mídia e para as redes sociais esses desejos, esses valores, essas maneiras de ser e pensar identificadas com o machismo, identificadas com dadas maneiras de ser masculino, que adquirem assim a repercussão e a legitimidade que haviam perdido pelo trabalho militante das mulheres e daquelas forças sociais e políticas identificadas com suas causas. O ser anacrônico que é Bolsonaro expressa e representa o anacronismo das forças sociais, das ideias, valores e costumes que configuram um estilo de ser, um modo de ser masculino definido pela cultura do machismo. Bolsonaro, suas grosserias  e agressões soa como uma reação, uma rebelião dos machos contra o avanço perigoso da mancha feminina e feminista que ameaçava tragar a sociedade e todos os homens. A horda bolsonarista é formada majoritariamente por homens revoltados, ressentidos, indignados por terem sido vítima, em algum momento de suas vidas, daquilo que decodificaram como sendo culpa das mudanças nas relações de gênero introduzidas pelas mulheres e pelo feminismo. Desde o adolescente que não consegue ver e ser servido e cuidado pela mãe porque ela trabalha, passando pelo jovem que com suas ideias e práticas machistas não consegue conquistar nenhuma mulher que deseja e é um fracasso como amante e nas relações sexuais, até o homem que foi deixado por sua companheira por ela não suportar o seu machismo, são sérios candidatos a bolsominions. Desde o senhor de idade que viu com contrariedade nas relações entre homens e mulheres se transformarem, passando pelo profissional que se viu preterido num emprego ou num concurso por mulheres, até aquele rapaz que se apavora diante de seus desejos homossexuais, que de dentro do armário passa a hostilizar todo e qualquer rapaz que tem coragem de viver o seu desejo, que deseja exterminar do mundo a homossexualidade para ver se assim elimina o desejo que o persegue, são destacados candidatos a buscarem em Bolsonaro o personagem que represente e projete socialmente os seus desejos e frustrações.

Um homem, um rapaz, um adolescente, um menino que não aceite as mudanças introduzidas nas relações de gênero pelas mulheres nos últimos séculos, são sérios candidatos à frustração de seus desejos e pulsões e logo à infelicidade, à revolta, à agressividade, ao pânico diante do diferente, ao ressentimento, ao ódio machista. Uma professora, em pesquisa realizada com estudantes adolescentes de escolas de periferia em São Paulo, constatou que muitos deles se identificavam com Bolsonaro não propriamente por suas ideias (que são poucas e absurdas), mas por sua atitude que parece de rebeldia e de contestação. Eles que são meninos e adolescentes, por sua condição social e racial de nascimento, já fadados ao fracasso no que tange a assumir com sucesso a condição do macho alfa, aquele que possui poder, que é o provedor, que tem dinheiro, posição, poder, que é branco e que é o centro das atenções das menininhas, veem em Bolsonaro a possibilidade da revanche. A grosseria e o sem modos do coronel não lhes é estranho, vivenciam isso todos os dias em seus próprios lares, pois possuem pais e padrastos que dele pouco diferem (quando os tem, sendo o mais comum nem os conhecerem, uma violência ainda maior), vivenciam isso através das lideranças mafiosas e criminosas que dominam suas comunidades, elas corporificam uma masculinidade extremada e violenta, vivenciam isso cotidianamente quando são vítimas da brutalidade, racismo e violência das instituições policiais, machos de classes populares, como eles, que veem na farda de uma corporação militar a possibilidade de ter uma vida minimamente digna e como um lugar para exercer sua masculinidade agressiva e exacerbada.

Causa espanto, para muitos, que mulheres e homossexuais sejam eleitores de Bolsonaro, como se o machismo não fosse formador das subjetividades de meninos e meninas, independente de sua escolha de objeto sexual. São mães machistas que formam filhos e filhas identificadas com o machismo. Muitas mulheres se queixam de que o feminismo acabou com a figura do provedor e jogou nas costas das mulheres mais uma tarefa, a de se sustentar, além de sustentar e cuidar de casa e filhos. Muitas mulheres alimentam fantasias machistas de retorno de uma padrão de relações de gênero que obriguem os homens a voltar a ter o papel de provedor, a ter o papel de pai de seus filhos (papeis que os homens navegando no discurso feminista trataram de desertar porque requer muita responsabilidade). Muitas mulheres chegam a temer e a culpar as mudanças de valores e costumes pela crescente visibilidade da homossexualidade, notadamente da masculina. A homofobia entre as mulheres, notadamente fruto da introjeção de discursos religiosos, são uma dos elementos que explicam a adesão delas a Bolsonaro. Ele encarna e corporifica o antigo machão que não deixava de ser atrativo sexual e afetivamente para muitas mulheres. Ele encarna e corporifica, inclusive, o sadismo machista que pode atrair mulheres e homossexuais tomados por desejos masoquistas. Entre os homossexuais masculinos é comum as fantasias masoquistas, a culpa pelo desejo considerado anormal, leva a que muitos homossexuais inconscientemente busquem a constante punição. Se frequentarmos sites destinados a veicular contos e vídeos destinados aos homossexuais masculinos nos damos conta de como é mais comum do que se pensa o desejo por figuras que representam, como Bolsonaro, o poder total, discricionário, a dominação absoluta. Muitos querem ser humilhados, subjugados, até mesmo violentados por policiais, bandidos, tarados, lutadores, bombeiros, sequestradores, etc (claro que sei da distância entre fantasia e realidade, muito do que fantasiamos não queremos ver realizado). Muitos só se sentem conciliados com seu desejo se se colocarem em situações de humilhação, subserviência e subordinação que associam a um dado modo de ser feminino, um feminino submisso, que goza com a humilhação e até com a violência simbólica e física. Bolsonaro encarnaria a figura do machão que estaria em extinção e em perigo, deixando, assim, o desejo de muitas mulheres e homossexuais no desamparo. Os desejos de extermínio do coronel se encontrando com os desejos suicidas de muitos.

Bolsonaro encarna as forças reacionárias aos avanços civilizacionais trazidos pelas conquistas das mulheres e homossexuais nestes últimos séculos. Ele encontra a parceria daqueles que se sentem, de alguma forma, atingidos por essas mudanças, aqueles que consideram que suas vidas sofreram perdas ou foram perdidas porque as mulheres e os homossexuais mudaram socialmente e culturalmente seu modo de existir. Bolsonaro representa a revanche dos machistas, sejam de que condição seja. As pesquisas eleitorais mostram que, ao contrário do que se possa pensar, os votos em Bolsonaro não vem dos pobres ou dos ignorantes. A maioria de seus votos vem das camadas dominantes e majoritariamente de homens que cursaram uma formação universitária. Podemos dizer que Bolsonaro é o representante do machismo esclarecido e de classe, já que para a maioria dessa gente o feminismo é inseparável do comunismo, de posições políticas de esquerda, o feminismo é identificado como uma ameaça aos privilégios não apenas de gênero, mas a qualquer privilégio, inclusive de classe. A pregação feminista, desde o século XIX, se apoiam nos conceitos perigosos da igualdade e da liberdade, nascidos da Revolução Francesa, com a qual todos os reacionários nunca se relacionaram bem. Ao pregar igualdade nas relações de gênero, o feminismo legitima essa reivindicação e amedronta aqueles portadores de privilégios de classe, que não gostam nem de ouvir falar em tal coisa. Se Bolsonaro é a encarnação da defesa das hierarquias e das desigualdades não é de estranhar que, apesar de ser um chucro, um rude,  um ignaro, um boçal, tenha o apoio de parte dos machos de nossas elites e se candidate a ter dela todo o apoio se o candidato chuchu não emplacar e, porventura, um candidato da esquerda chegue ao segundo turno com o coronel. O machismo já aproxima a todos, não será difícil que nossa elite chic dê o passo na direção do homem dos rompantes e da fanfarronice machista, se as circunstâncias os irmanarem. A operação salva os machos está aberta, as urnas podem ser um desaguadouro dela!

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