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16 de outubro de 2018
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"Toma no cu, caralhooooooo!" - foi o primeiro grito que escutei ao iniciar a apuração das eleições do primeiro turno, quando o candidato mito disparou na frente para a Presidência, como se fosse a voz da nação alemã comemorando os 7 x 1 que tomamos no cu há algum tempo. Mal sabe o rapaz que tomaremos, nesse caso, todos juntos, é verdade.

Mas o pior ainda estava por vir. No final da partida, opa, desculpe, quis dizer da contagem dos votos, chegou a notícia alentadora de que haveria, pelo menos, segundo turno; que afinal, o outro lado do país não havia perdido de 7 x 1, pelo menos, dando um fio de esperança a uma criança que gritou, desavisada: "Lula livreeeee!!!!"

A simples expressão inocente e sem qualquer xingamento ou ódio de uma vontade contida, silenciada por quem não admite que se pense diferente, provocou no rapaz do início da apuração uma indignação tamanha, a ponto de ele proferir as mais terríveis ameaças, em alto e bom som para toda a Alameda Gravatá, onde moro em Brasília, escutar, desde "comunistas escrotos vocês vão morrer" até "Lula livre é o caralho, seus filhos da puta".

Só gritei uma frase, em defesa da ordem e da boa vizinhança: "quando o senhor aprender a falar, a gente conversa!"- ao que fui respondida com tiros. Sim, isso mesmo: tiros para o alto, mas tiros. Sem acreditar naquilo, apenas por puro reflexo, eu e minha filha nos jogamos no chão e choramos juntas o primeiro ato de intolerância e violência que vivenciamos na pele. Alguém gritou que chamaria a polícia e, não sei se por isso ou se acabou a munição, os tiros cessaram.

Outras manifestações semelhantes se seguiram, até com consequências mais trágicas, nos diversos estados do país.E, a medida que escutava ou lia sobre essa sequência de atos insanos e extremos, maior era minha vontade de dizer alguma coisa, mas não sobre o desespero do país nem sobre a certeza de que toda a nação precisa de um divã, e até de colo, provavelmente.

Queria só repetir muitas vezes, como se isso pudesse acelerar os quatro anos que estão por vir, o que disse naquele domingo pra minha filha, que "vai passar"...Queria achar palavras capazes de encher de esperança, ainda que tardia, quem está sofrendo em cada pedaço esquecido do Brasil, sem encontrar abrigo sequer nos familiares, que erram "cegos pelo continente" e, adormecidos, como nossa "pátria mãe tão distraída", nem percebem que estamos perdendo, todos, um tanto de humanidade que ainda nos resta.

Queria ter paciência e persuasão suficientes para conseguir dialogar com meus familiares, que sei que me amam, que sei que não são homofóbicos, não são racistas, nem a favor da ditadura (ao menos os que conheceram meu pai de verdade não são e sei que os que são a favor da ditadura talvez até atribuam ao meu pai, só porque ele era militar, essa escolha, mas alerto aqui: tenho certeza de que não seria a dele).

Queria explicar que a derrota não será do PT, será da democracia, será das liberdades individuais duramente conquistadas, será dos direitos humanos, será da possibilidade de ter opções, será até de andar livremente nas ruas, sem medo de expressar seu pensamento.

Mas minha única arma, e é a única mesmo que quero continuar a ter, é poder dizer que "vai passar", e que espero até que todos os prognósticos estejam errados, e que nossos filhos não paguem o preço da nossa cegueira.

Por isso, e por saber que nascerá, ainda que da possível derrota que se anuncia, uma forte resistência de mais de 40 milhões de pessoas, com nossas deliciosas células subversivas a espalharem amor nas pequenas revoluções diárias de quem não cansa de lutar, é que uso Chico Buarque pra remediar a dor e garantir que um dia veremos de novo uma cidade a cantar "a evolução da liberdade, até o dia clarear".

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