Não sou obrigada
Natal, RN 23 de abr 2024

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18 de dezembro de 2018
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Hoje minha filha de 15 anos foi comida com os olhos, mesmo sob meu olhar atento, ainda que eu tentasse, de todas as formas, me colocar entre o assediador e ela, lançando para ele toda minha reprovação e vontade de desintegrá-lo, com esse mesmo olhar.

Mas senti que para ele era como se pedíssimos por isso ou estivesse implicitamente autorizada tal conduta, já que não estávamos sob o manto de proteção do vagão de uso exclusivo de mulheres. Olhou minha filha, vestida com uniforme da escola, da cabeça aos pés, como se estivesse nua. Tentou se encostar nela, mas fiquei entre os dois, mesmo com toda a dificuldade de um metrô lotado.

E não foi a primeira vez que passamos por isso, infelizmente. Cena comum em transportes coletivos de Brasília, mas que sempre me causa indignação, porque me lembra de outras tantas cenas que somos obrigadas, desde criança, a aceitar como comum.

Eu, forçada pela vida a ignorar (e assim permitir) aquele olhar malicioso que parece engolir a gente, um pseudo-elogio em voz alta que nos resume a qualidades físicas como "gostosa", e até mesmo um furtivo assobio, nunca me senti tão ferida e impotente, quanto da vez em que o assédio começou a machucar minha menina...

Foi num carnaval, ainda em Natal, aos 12 anos, o primeiro contato dela com esse tipo de violência. Estava fantasiada de anjo, com sua ingenuidade imaculada, até que um camarada bem mais velho que ela resolveu que era direito dele puxar-lhe o cabelo.

Ela virou pra mim, horrorizada, e começou a chorar. Não demorou pra que eu entendesse o que tinha acontecido, e botei a boca no trombone, informando ao rapaz que ela era menor de idade e que eu ía chamar a polícia.

Mas antes mesmo que ele fugisse do flagrante, ela me pediu pra ir embora pra casa, assustada com a abordagem, que não deveria ser considerada tão comum mesmo em festas como essa.

Tentei explicar, como para amenizar a marca da violência praticada, que essas festas tinham mesmo dessas coisas, ao que ela retrucou, do alto dos seus 12 anos, que não estava certo, que se sentiu muito mal com aquilo.

Os argumentos dela me fizeram sentir culpada por tentar amenizar qualquer coisa, porque pareceu, por um lado, uma tentativa de forçá-la a achar que aquela atitude era comum, como se merecesse ser perdoada ou aceita socialmente, quando, na verdade, não somos obrigadas a naturalizar esse tipo de comportamento.

No caminho pra casa, voltei atrás no meu pensamento machista-normativo que acabei obrigada a ter diante de situações semelhantes a essa, porque entendi que até mesmo o mais simples assédio pode ser sim uma violência e merece ser combatido de forma veemente, quando incomoda, machuca, indigna, deixa marcas....

Lembro de um filme francês que assisti dia desses "Eu não sou um homem fácil" em que o personagem principal, um homem, bate a cabeça e, de repente, o mundo dele vira ao avesso, como se as mulheres é quem passassem a assediar os homens, a comê-los com os olhos, a exigir deles uma satisfação pra seus desejos mais sacanas, e os homens é que passam a se indignar, se horrorizar com o assédio nosso de cada dia.

O filme é uma bela sacada e também me ajudou a reconhecer que não somos obrigadas a nada. Mas não adianta só a mulher reagir e falar alto, ou escrever sobre isso, não é mesmo? Talvez fosse preciso que esse tipo de macho batesse a cabeça e vivesse um dia que fosse na condição de assediado, ao invés de assediador. Quem sabe assim, como no filme, compreendesse que mesmo os pequenos hábitos de comer com os olhos ou assobiar podem ferir e transformar pra sempre a vida de quem ainda tem a capacidade de dizer: não sou obrigada!

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