No calor do meio-dia
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No calor do meio-dia

10 de dezembro de 2018
No calor do meio-dia

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Não vou mentir: houve um tempo em que eu acreditava que, em relação à poesia, valia muito mais considerar a vontade de potência poética do que cair na cilada do bom x ruim. Eu renegava as dicotomias da crítica literária tradicional, crítica essa que quase sempre cai na disputazinha centro vs. margem, e considerava exclusivamente outras coisas, igualmente importantes e constituintes dos poemas, como os ritos genéticos do poeta na criação, os hábitos e as práticas que tornaram possível uma obra etc. e tal. Então, se uma criatura com pretensões a poeta tivesse feito um fanzine horroroso, eu achava lindo, divino e maravilhoso, porque para mim o que importava mesmo era o percurso do autor e a tentativa de transformar algo abstrato e amorfo em uma beleza.

A beleza é um conceito, disse o poeta Manuel Bandeira. E outro poeta (Keats) disse também que uma beleza é uma alegria para sempre.

O tempo passa... E os critérios de leitura e avaliação, por mais que pareçam (e muitas vezes são) arbitrários, também passam. Amadurecem. Podem apodrecer também, claro... Mas, definitivamente, mudam.

A gente, que tem a sorte de viver mais, envelhece e aprende (quando se permite) a encarar tudo o que o tempo traz de bom e ruim. Então, por exemplo, se o ruim pode equivaler a um Alzheimer, por exemplo, o bom pode, por outro lado, equivaler a seletividade.

Atividades, posicionamentos, grupos, textos e, sobretudo, pessoas, com o tempo, vão sendo selecionad@s e aprimorados. A experiência vai ajudando.

É no que creio: seletividade e excelência se adquirem com o tempo e pelo hábito. Assim, quanto mais poesia se lê e se faz, mais possível aprimorar e selecionar filtros poéticos justos que vão soar mais elaborados, têm mais requinte, trazem consigo um efeito de universalidade e fazem doer e gozar plenamente algo dentro de si. Algo que diz: isso sim é que é poesia!

Evidentemente, existe toda uma economia, uma estrutura de relações de classe e de força, um mercado, uma conjuntura – muitas vezes, quase sempre, perversa – que seleciona, que faz com que alguns livros (e zines) de poemas sejam lidos enquanto outros não, com que uns escapem e outros sumam, que uns sejam aplaudidos enquanto outros sejam queimados, e que vão construindo, histórica e socialmente, os nossos critérios de valor. Mas, também no nível pessoal, há uma seletividade que constitui o gosto com base na prática, no hábito de tornar íntimo o que era distante e permite fazer pensar: vontade poética é muito fácil de se encontrar, tanto que muita gente por aí se arvora ser poeta. Quero ver agora é ter a potência.

O que define potência poética? Para além do tempo, do espaço, do grupo de amigos/inimigos, do (re/des)conhecimento dos veículos e academias amados e/ou odiados, dos posicionamentos estéticos favoritos e rejeitados, acredito sim que se possa dizer – Isso sim é poesia!

Eis-me aqui com toda minha insignificância para dizer então – eis aqui a POESIA!

Nesses últimos dias, estive folheando, abrindo e fechando, lendo e relendo o meu exemplar, saidinho do forno, de “Meio-Dia”, o mais recente livro de Thiago Medeiros. Leio uns versos para minha filha Rosa, a quem sempre consulto, inclusive sobre questões semântico-existenciais, e pergunto:

– Filha, se você tivesse que definir em palavras (e não em desenhos, no que ela é fera) o que é isso, o que você diria?

Ela responde, sem pestanejar:

– Coisa de Poeta...

Não é porque Thiago e eu somos amigos, com todas as alegrias e estremecimentos aí implicados. Ele poderia ser um desconhecido que, para mim, continuaria sendo sim um poeta porque seus versos dizem um sentir que é meu também. E que pode ser de qualquer vivente que sente. Pela poesia, há uma intimidade partilhada. Uma intimidade que diz, por exemplo, dos nossos dilemas humanos entre o bem e o mal:

homens abrigo

velas acendo

chamo pelo teu anjo

– e sempre falho

homem, desejo mesmo é a hora exata do teu demônio.

Essa intimidade de quem oscila entre o real imediato e o além do entendimento, mas que, como diria outro grande poeta (dá-lhe, Leminski!), não discute com o destino e o que vier assina, tal como em Magia:

alfazema sal grosso

velas acesas na lua cheia

nestes dias em que a vida quer judiar tanto

magia para aquecer o coração e fazer nascer

onde era dor: pureza, coragem e rebeldia.

Das tensões entre dores e prazeres humanos partilhados, encontro mais, como por exemplo a referência a outros poetas, como nesses versos metaenunciativos de A mulher e o abismo, poema dedicado a Ana Cristina César:

abro as janelas do peito

atiro espadas e o meu corpo

do terceiro andar

é esta fome de tudo que eu quero matar.

Ou ainda à Clarice Lispector, eterna musa de nossos desacertos, como em Macabéa:

sou mais feliz

quando

não presto

pra ninguém.

Também nessa vibração intensa do entremeio de si junto a tudo, também a explorar a relação ambígua entre arte e vida (o que é invenção poética? o que é existência?), podem ser destacados aqueles poemas que reverenciam a cidade que se habita, como por exemplo Potengi:

por dentro dos cortes há um rio

onde resto de tudo atraca

ensanguentado rio

de águas sujas

é o que sou.

Há que se ressaltar o longo processo que este livro completa: desde a presença fundamental na cidade do projeto encabeçado por Thiago, Insurgências Poéticas, passando pela cicatrização de feridas de uma agressão a ser transformada em versos, pela campanha de vaquinha virtual para reunir os recursos necessários para diagramação e impressão do livro (sob a chancela do efetivo editor de Natal, Ivan Jr.) até concluir-se na celebração do encontro de pessoas diversas que atravessam o livro, como diria outra poeta incrível, Carmen Vasconcelos, que assina o prefácio. Uma dessas pessoas se destaca: a senhora Joanete, que, tornando o livro ainda mais uma beleza, escreveu de próprio punho o título dos 117 poemas de Thiago, seu filho, que lhe rende assim uma bela homenagem.

Para comemorar, então, a alegria e beleza que são um bom livro de poesia, em meio à tanta judiação que a vida também traz, Thiago Medeiros convida tod@s para o lançamento oficial de sua cria poética na festa “Alecrim Afetivo”, dia 15 de dezembro, a partir do pino do meio-dia. Que é para aquecer nossos corações.

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