Por que a extrema-direita cresce em todo o mundo I: a insegurança
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Por que a extrema-direita cresce em todo o mundo I: a insegurança

30 de dezembro de 2018
Por que a extrema-direita cresce em todo o mundo I: a insegurança

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A vitória de Jair Bolsonaro nas últimas eleições brasileiras não pode ser analisada como um fenômeno isolado e com causas apenas internas ao país e a sua vida política. Não podemos atribuí-la a um mero engano por parte da população brasileira. Não podemos considerá-la um mero produto de manipulação via meios de comunicação de massas e redes sociais. Há um crescimento da extrema-direita em todo o mundo e não enxergar isso é adotar uma postura de avestruz. A vitória de Donald Trump nas eleições norte-americanas, embora como todo fenômeno histórico e político tenha sua individualidade e resulte de fatores singulares, já indiciava esse crescimento das forças de direita e extrema-direita em todo mundo. Governos de direita governam o Chile, a Argentina, a Colômbia, o Peru, o Paraguai, só para nos atermos a América do Sul. Em recentes eleições na província da Andaluzia, na Espanha, o partido de extrema-direita, saudoso da ditadura franquista, Vox, foi a quarta força mais votada, conquistando doze cadeiras no parlamento andaluz. A extrema-direita governa países europeus como Hungria e Polônia e divide com a extrema-esquerda, num curioso consórcio antiglobalização e antieuropeísta, o governo da Itália. O neonazismo ressurge com força na própria Alemanha onde conquistou postos importantes nas eleições locais e regionais. Na França, a candidata de extrema-direita Marine Le Pen alcançou o segundo turno nas últimas eleições, sendo derrotada por um candidato de centro-direita, Emmanuel Macron. Na Ásia e na África contam-se nos dedos os países que não são governados por ditadores ou por agrupamentos políticos conservadores, como é o caso das Filipinas, de Israel, da Arábia Saudita, do Irã, da Síria e da Turquia. Não podemos esquecer as ditaduras pretensamente de esquerda como as da Coreia do Norte e da China ou o governo autocrático de Vladimir Putin, na Rússia.

Ora, mas para entendermos este espraiamento de uma onda conservadora em todo mundo é preciso pensarmos o que está gerando nas populações esse desejo por governos conservadores e autoritários. Não é suficiente reduzirmos o fenômeno ao mero jogo das forças políticas e dos eventos eleitorais. Não é inteligente pensarmos que se trata de um fenômeno sem lastro social, econômico e cultural. Como podemos constatar nos últimos anos, no Brasil, a eleição de Bolsonaro é apenas uma consequência, uma resultante de um crescimento em nível social e cultural de consciências e sensibilidades conservadoras e reacionárias, quando não microfascistas. Jair Bolsonaro, infelizmente, não é uma excrescência, um fenômeno isolado, uma mera figura caricatural. Jair Bolsonaro se tornou presidente da República porque foi desejado por muitos, porque encarna os valores e as formas de pensar de milhares de pessoas no país, porque uma multidão de pessoas se vê nele representados. Ele é a encarnação de um tipo de subjetividade, de desejos, de valores, de ideias, de conceitos e preconceitos que estão disseminados na sociedade brasileira. Se o mito é a encarnação de uma subjetividade e de desejos microfascistas, seus seguidores e grande parcela daqueles que nele votaram partilham dessa mesma forma de ser sujeitos. É se enganar atribuir a mera fraude, a desinformação, a manipulação sua eleição. Ele, infelizmente, é a encarnação de formas de pensar e sentir que estão disseminadas no interior da sociedade, que eram minoritárias, em dado momento, mas que vêm se tornando, por motivações históricas, que devemos tentar diagnosticar, majoritárias.

Essa semana ressurgiu nas redes sociais uma entrevista dada pelo historiador inglês, Eric Hobsbawm, ainda no ano de 2001, quando de uma de suas passagens pelo Brasil. Nela ele previa um crescimento da direita e da extrema-direita, com o surgimento de outras formas de fascismo, inclusive atingindo a sociedade brasileira. Em conversa com o jornalista Roberto D' Ávila ele apontava algumas das motivações históricas que, segundo ele, provocariam essa onda conservadora em todo mundo. A nova etapa do capitalismo, um capitalismo cada vez mais dominado pelo capital financeiro, um capitalismo que, sem o contraponto da existência dos países socialistas, entrava num rápido processo de ataque às conquistas sociais dos trabalhadores e da regulamentação estatal que levaram a constituição dos chamados Estados de Bem-Estar Social, notadamente na Europa e nos países centrais ao sistema. A emergência do discurso neoliberal se dava à medida em que o encerramento do período de expansão econômica iniciado no pós-guerra, anunciado pela chamada crise do petróleo, do início dos anos setenta, era atribuído ao processo de regulamentação das atividades econômicas por parte dos Estados, como forma de evitar a repetição de crises como a que ocorrera em 1929. Desde que os governos de Ronald Reagan, nos EUA, e Margareth Tatcher, na Inglaterra, adotaram as premissas neoliberais, o que se viu foi uma crescente liberalização das regras para funcionamento dos mercados e o constante ataque às conquistas feitas pelos trabalhadores em suas lutas, desde o século XIX. Como resultado, as sociedades capitalistas passaram a oferecer formas de vida cada vez mais inseguras e precarizadas, relações de trabalho cada vez mais informais, com desvalorização crescente do trabalho e do emprego como lugares de atribuição e construção de identidades sociais, sendo substituído pelo consumo. Ser consumidor e o que se consome passou a ser cada vez mais importantes para definir o lugar de alguém na sociedade do que no que ela trabalha ou faz.

Temos que ter em conta que o capitalismo não é apenas um modo de produção de mercadorias, bens e serviços, o capitalismo também instaura modos de produção de subjetividades, modos de produção de sujeitos adequados a seu funcionamento. O capitalismo é inseparável da produção do sujeito burguês e do sujeito trabalhador, de subjetividades que se alojam e se sentem representadas por esses lugares de sujeito. A crescente perda de centralidade da figura do trabalhador na vida social, sua substituição pela figura do consumidor é uma das formas prevalecentes de produção de subjetividades no mundo contemporâneo, que vem atrelada à precarização dos empregos e das relações de trabalho, como a reforma trabalhista realizada por Temer bem exemplifica. Para entendermos a adesão de uma parcela crescente das classes trabalhadoras ao voto conservador, ao voto em forças políticas de direita e de extrema-direita, precisamos levar em conta essa insegurança existencial crescente produzida pela nova etapa do capitalismo. Essa insegurança se acentua a medida em que o avanço tecnológico significa a redução dos postos de trabalho e a desaparição de muitas atividades e profissões. O novo deslocamento global das populações da terra, induzida pelo crescimento da concentração da riqueza, o avanço da miséria e dos conflitos bélicos em várias partes do mundo, combinado com as informações sobre a realidade dos países centrais do sistema acessadas pelos novos meios de comunicação, também amplia a concorrência pelos postos de trabalho, contribui para o rebaixamento das taxas salariais, gerando o crescimento dos sentimentos de xenofobia e de racismo, sentimentos que encontram guarida e expressão políticas nas forças de direita e extrema-direita. As últimas eleições francesas são exemplares a esse respeito: grande parte das cidades que ficam nas áreas industrializadas e onde se concentra o eleitorado de origem operária deslocaram seu voto, tradicionalmente dado aos partidos de esquerda, para os partidos de direita.

A retórica da direita e da extrema-direita, com o reavivamento do nacionalismo, com críticas à globalização, aos acordos de livre-comércio, ao europeísmo (ou seja, a construção da Comunidade Europeia, no caso dos países desse continente), com a promessa de fechamento das fronteiras a entrada de imigrantes estrangeiros, com a promessa de expulsão dos imigrantes clandestinos tem calado fundo nas camadas trabalhadoras, notadamente nos países centrais do sistema. A vitória de Donald Trump, com o voto de grande parte dos grandes centros operários do país, explicita como essa necessidade de segurança existencial, essa necessidade de um mínimo de estabilidade na vida laboral, tem levado muitos daqueles que antes votavam nas forças da esquerda, se alinharem com as forças da reação. O choque que vemos esses dias entre republicanos e democratas, nos EUA, com a recusa da Câmara, onde os democratas possuem maioria, em aprovar os recursos para a construção do prometido muro na fronteira com o México, mostra que Trump sabe que sua reeleição depende do cumprimento dessa promessa simbólica de sua campanha. A eficácia desse muro para conter a imigração é bastante duvidosa, mas ele é fundamental na simbolização do fechamento das fronteiras nacionais para os invasores que veem roubar os empregos dos americanos, rebaixar as taxas salariais (já que aceitam trabalhar por salários mais baixos a medida que são clandestinos) e aumentar, inclusive, segundo a retórica da direita e da extrema-direita, a criminalidade. A reação protagonizada pelos médicos brasileiros em relação à vinda de médicos cubanos para o país, a reação provocada pela chegada dos imigrantes haitianos e, agora, dos venezuelanos, têm sido utilizadas pelas forças da direita no país para disseminar entre nós, um país de imigrantes, formado por gente desterritorializada de todos os quadrantes, esse discurso xenófobo e racista.

A nova crise global do capitalismo, instaurada desde o ano de 2008, foi motivada, exatamente, pela desregulamentação neoliberal promovida pelos países centrais do sistema, nos anos anteriores, o que levou a uma total perda de controle dos Estados sobre os fluxos de capitais, com o crescimento da centralidade dos paraísos fiscais e dos capitais provenientes de atividades criminosas e ilegais (tráfico de drogas, tráfico de armas, tráfico de pessoas, sonegação fiscal, branqueamento de capitais) para a reprodução do próprio sistema. Essa perda de controle também se deu no setor financeiro, com os bancos podendo realizar transações e movimentações financeiras sem o suficiente controle das autoridades fiscais e monetárias do países, o que levou a fraude nos balanços de vários bancos e o crescimento desordenado do meio circulante sem o correspondente em valores econômicos. A nova crise global do sistema levou a adoção, em vários países, de duras políticas de recuperação econômica sob a supervisão dos organismos internacionais, dos bancos centrais e dos mercados financeiros. As políticas de bem estar social foram culpabilizadas pelo discurso neoliberal pela quebra de vários países, atolados em dívidas com o setor financeiro e com enormes déficits fiscais, muitas dessas dívidas contraídas por governos conservadores e neoliberais sob o incentivo do próprio setor bancário e dos organismos financeiros internacionais como Banco Mundial, FMI, etc. Essas políticas de recuperação econômica, aplicadas, inclusive, por sucessivos governos ditos socialistas levaram a desmoralização e ao descrédito crescente dos partidos mais à esquerda no espectro político, o que também favoreceu o crescimento da direita e da extrema-direita em vários países. No Brasil, apesar de quase uma década de sucesso e boa gestão econômica por parte do Partido dos Trabalhadores, a crise econômica de 2008 criou as condições para que as forças de oposição no país subissem o tom das críticas ao governo e, posteriormente, articulassem um verdadeiro cerco e boicote ao governo Dilma, no Congresso Nacional, impedindo que ela tomasse as medidas necessárias, inclusive para corrigir erros cometidos na gestão da economia, o que terminou por levar a população a culpar o PT por uma crise que não foi ele que gerou e cuja solução ainda estar por ser encontrada.

Sabemos que um dos principais motivos da vitória de Bolsonaro foi seu discurso prometendo segurança. Erra quem acha que a necessidade de segurança se deve apenas à criminalidade e à violência que atinge níveis assustadores no país. A violência urbana, a falta de segurança pública, no entanto, só exacerba e explicita a sensação de insegurança que o próprio estágio atual do capitalismo promove. Quando Marx, já no Manifesto Comunista de 1848, dizia que com o capitalismo tudo que era sólido se desmancharia no ar, ele apontava para a capacidade de geração de insegurança que o sistema capitalista trazia. O capitalismo tem como uma de suas características o de ser um modo de produção que está permanentemente revolucionando a sua própria forma de funcionamento. Desde o século XIX, todas as lutas sociais e políticas se deram no sentido de conter as tendências desterritorializantes, as tendências desestruturantes do capitalismo. O que se conseguiu com as políticas inspiradas pelas ideias do economista John Maynard Keynes e graças às lutas operários foi tentar regular e conter as forças e fluxos caotizantes que o capitalismo produz em seu funcionamento. O capitalismo é gerador de insegurança a medida que está permanentemente alterando sua própria regulamentação, seus regramentos, suas formas de funcionamento, suas bases tecnológicas, deslocando sua produção de espaços, alterando as relações de trabalho e emprego. Quando as pessoas, no Brasil, estão clamando por segurança, elas atribuem a insegurança que sentem aqueles que são execrados como bandidos ou como corruptos todos os dias na televisão. A insegurança, que é existencial, que é promovida pelas formas de vida precarizadas pelo capitalismo, é atribuída a um outro que se torna o bode expiatório do mal estar causado por vivermos em constante incerteza. Isso é um passo para que esse mal estar e essa insegurança se tornem simpatia e empatia com o candidato que diz que bandido bom é bandido morto, que irá dar permissão para a polícia matar indiscriminadamente os ditos bandidos, que diz que os corruptos mofarão na cadeia (desde que não seja aqueles de estimação do candidato), com o candidato que promete matar todos os vermelhos (causadores de insegurança), que promete dar a cada um uma arma para se defender desse bode expiatório, que é o bandido. Quando Regina Duarte, bolsonarista de carteirinha, já expressava seu medo na campanha de 2002, seu medo, sentimento ligado à insegurança existencial, é causado por uma sociedade que tem na competição e no conflito de classes a sua forma nuclear de organização. Bolsonaro venceu, entre outras coisas, porque, até mesmo por ser um ex-militar, por envergar uma farda, simbolize o que seria alguém capaz de oferecer segurança, num mundo de pessoas inseguras. O crescimento da bancada da bala, esse ministério coalhado de homens fardados, os vários agentes de segurança eleitos para cargos majoritários, explicitam essa busca e necessidade de segurança, que no caso do Brasil são potencializadas pela extrema violência com que convivemos, violência que tem raízes históricas e que é preciso discutir. A busca de forças políticas que representam a ordem e a segurança é resultado, portanto, da crescente insegurança existencial promovida pelo próprio capitalismo. Nos próximos artigos iremos comentar outros aspectos e fatores geradores dessa insegurança, como a precarização dos sistemas de previdência e saúde, como a privatização dos serviços públicos, como o fim da estabilidade no emprego no setor público, como a crise do próprio sistema político e as profundas mudanças culturais, institucionais e de valores que vivenciamos desde, pelo menos, a década de sessenta do século XX, quando o capitalismo dava os primeiros passos na direção dessa nova etapa de seu funcionamento, não apenas econômico, mas social e existencial, pois, afinal, o capitalismo não é uma entidade abstrata, sobre-humana, ela é encarnado por pessoas que, em todas as faixas sociais, vivem vidas muito mais desreguladas e sem amparos institucionais e legais (quem sabe o aumento da corrupção entre as elites dirigentes do sistema não se deva também à própria insegurança em que vivem, executivos que ganham milhões, que se deslocam pelo mundo constantemente, que nem casa ou família direito têm, que podem perder o emprego e o poder a qualquer momento, tratam de acumular de maneira fraudulenta a maior quantidade de recursos em busca de uma segurança de vida).

O estágio atual do capitalismo se caracteriza pela criação de formas vida e de trabalho cada vez mais precárias. A informalidade (um dos objetivo a ser alcançado pela política trabalhista do governo Bolsonaro, segundo ele mesmo) crescente das relações de trabalho, o crescimento das formas de trabalho temporário, a rotatividade dos postos de trabalho, a previsão de possíveis reduções de salário previstas em contratos de trabalho, a chamada flexibilização do trabalho, o fim mesmo da ideia de especialização e profissão, a competição crescente por postos de trabalho precarizados, a destruição permanente de postos de trabalho e de profissões, a exigência neoliberal de que cada um seja um empresário de si mesmo, que se vejam como capital humano, que tenham sucesso e poder sem que as condições para isso sejam dadas, produzem subjetividades e sujeitos inseguros, carentes de certezas e de ordem, o que é um caldo de cultura extremamente favorável para o crescimento de forças políticas que se propõem a produzir a ordem, a segurança e a certeza, em todos os âmbitos. Num mundo em que tudo parece naufragar, em que todos parecem surfar sobre ondas enfurecidas, em que tsunamis varrem periodicamente as praias e as casas de nossas vidas, essas forças reativas e reacionárias aparecem como a tábua de salvação, o restolho salvador em que se agarrar e navegar, a rocha que sobrou para se agarrar, o último porto e lugar seguro para se habitar. O encarniçamento, a violência, o aferramento com que as pessoas combatem a favor dessas forças da reação só demonstram o quanto para elas essas opções reacionárias são importantes existencialmente, o quanto elas parecem ser o único e último refúgio em um mundo hostil e perigoso. Os bolsominions são pessoas inseguras e desorientadas em busca de algo e alguém para se agarrar como verdadeiras salvações em um mundo desertado de segurança e ordem. Em um mundo distópico, as únicas utopias que restaram (e a crise ou a morte delas é outro componente a ser comentado) são utopias regressivas e saudosistas de um mundo seguro e previsível. O que eles não sabem é que não é o comunismo, os vermelhos, o petismo, os petralhas, o lulismo, o bolivarianismo, quem provocam e são motivo da insegurança, do mal estar, do medo de que sentem, é o capitalismo, a que tanto defendem. Regina Duarte e seu marido fazendeiro do agronegócio pensam que é o petismo que gera o medo e a insegurança que sentem, ledo engano querida ex-namoradinha do Brasil: é o capitalismo mesmo, cara pálida!

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