Gosto de sentir a minha língua roçar a língua de Luís de Camões e a de Chico Buarque
Querido Chico,
Ouço a declaração de um sonhador titã e coração de poeta, porque contigo aprendi a perder e achar graça, pagar e não dar importância. Se acaso me quiseres, sou dessas mulheres que ao mirar-se nas de Atenas, pensam que vence na vida quem diz não. E sim, eu semeio vento na minha cidade, vou pra rua e bebo a tempestade.
Eu te vejo sumir por aí, tu passas e continuo tua vigia, catando a poesia que entornas no chão. E, se de repente, a gente distraísse o ferro do suplício ao som de uma canção, e você me convidasse para uma fantasia no seu violão, eu faria samba e amor até mais tarde. O problema é que a roda de samba acabou e a coisa aqui tá preta!
Olha... agora já não é normal, o que dá de malandro regular, profissional! Malandro com aparato de malandro oficial, malandro com retrato na coluna social, que nunca se dá mal... E mais: toda vez que um justo grita, um carrasco o vem calar. Quem não presta, fica vivo, quem é bom, mandam matar. Jogam a pedra na Geni, e se a sentença se anuncia bruta, mais que depressa a mão cega, executa, pois que senão, o coração perdoa. Pedro Pedreiro está esperando aumento desde o ano passado para o mês que vem, subiu a construção como se fosse sólido, ergueu no patamar quatro paredes mágicas e se acabou no chão feito um pacote flácido. Morreu na contramão atrapalhando o público.
Pois é, a maré não tá boa, quanto mais trabalho, menos vejo dinheiro! Só nos resta dizer chame o ladrão, chame o ladrão ou Deus lhe pague pela cachaça de graça que a gente tem que engolir, pela fumaça desgraça que a gente tem que tossir, pelos andaimes pingentes que a gente tem que cair...
Dorme a nossa pátria mãe tão distraída, sem perceber que é subtraída em tenebrosas transações.
Por isso ando com minha cabeça já pelas tabelas, claro que ninguém se importa com minha aflição, mas quando chegar o momento, esse meu sofrimento vou cobrar com juros, pois como beber dessa bebida amarga, tragar a dor, engolir a labuta? (Dados juntos quatro braços, e esses safados já estão no bagaço!).
Mesmo com todo o emblema, todo o problema, todo o sistema a gente vai levando, a gente vai levando, a gente vai tomando, que também sem a cachaça ninguém segura esse rojão! (Pai, afasta de mim esse cálice...)
Sei que amanhã há de ser outro dia, que a manhã vai renascer e esbanjar poesia e eu vou morrer de rir, que esse dia há de vir, porque anda na cabeça, anda nas bocas.
Tem certos dias em que eu penso em minha gente e sinto assim todo o meu peito se apertar, mas a minha dor, a nossa dor, que está na romaria dos mutilados, está na fantasia dos infelizes e já não cabe na batida de um cavaquinho, diz alô, Liberdade, levante, lava o rosto, fica em pé, que a história é um carro alegre, cheio de um povo contente, que atropela indiferente, todo aquele que a negue.
Sigamos, Chico, cantando coisas de amor, pois não existe pecado do lado de baixo do Equador.
Da sempre sua,
Aparecida Fernandes.