Cariocas descobrem a história que a história não conta sobre o Nordeste
Natal, RN 28 de mar 2024

Cariocas descobrem a história que a história não conta sobre o Nordeste

20 de julho de 2019
Cariocas descobrem a história que a história não conta sobre o Nordeste

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O carioca Gustavo Ciríaco é neto de alagoanos. O avô dele era soldado da então recém-criada República e tinha como tarefa caçar cangaceiros nas matas e sertões do Nordeste. O sobrenome da família Ciríaco, ele conta, tem uma de suas raízes fincadas na região onde surgiu o povoado de Canudos, no interior da Bahia, mais tarde dizimada por soldados do Estado, como o avô do carioca.

Gustavo não conheceu Jacaré dos Homens, cidade-natal do patriarca da família, mas reencontrou o Velho sexta-feira (19), no palco do Teatro Carlos Gomes, no Rio de Janeiro, durante a apresentação do espetáculo “A Invenção do Nordeste”, do grupo potiguar Carmin, em mini-temporada no Rio até dia 28 de julho.

A peça é dirigida pela paraibana Quitéria Kelly e traz no elenco Henrique Fontes, Mateus Cardoso e Robson Medeiros. O videomaker Pedro Fiúza completa o time.

Os cariocas aplaudiram de pé o espetáculo inspirado na obra homônima do historiador paraibano Durval Muniz de Albuquerque Jr. Mais do que rir, o público descobriu uma parte da história do Brasil que não é contada nos livros das escolas. Pegando carona no samba-enredo campeão da Mangueira em 2019, a Invenção do Nordeste é um encontro do público com a história que a própria história oficial não conta.

Um dos personagens que mais chamou a atenção do plateia foi o controverso padre Cícero Romão, vendido como “milagreiro” pela história oficial, mas apresentado como um coronel que, se precisasse, mandava até matar opositores.

Gustavo Ciríaco estava no saguão do teatro Carlos Gomes após o espetáculo que despertou nele a curiosidade sobre a criação de determinados clichês na história brasileira:

- É interessante saber como figuras como Padre Cicero são inventados, como clichês são criados e passam a fazer tanto sentido que criam identidade, apesar de virem de uma ideia pronta. E depois de um tempo ainda ganham profundidade. A peça é uma ficção, mas que se torna real. Sou neto de nordestino, meu avô era de Alagoas, então tenho o Nordeste desde sempre comigo. Meu avô veio muito cedo para o Sudeste, era um dos guardas que iam atrás dos cangaceiros”, conta.

Rosane Melo também ficou impressionada com um pedaço da história do Brasil até então escondida dela. Saiu o teatro refletindo sobre o país onde milhares de pessoas ainda precisam deixar suas casas para buscar objetivos:

- Algumas questões históricas eu não sabia. Eu não tinha ideia sobre a própria criação da região Nordeste. Gostei muito. Tem uma coisa séria e uma pegada de comédia, mas extremamente inteligente. E aproxima o público porque mistura fatos atuais no meio da peça. É um constrangimento viver num país que pessoas ainda são obrigadas a abandonar suas famílias para ter um espaço de trabalho. Saem de suas casas, vem pra cá e quando chegam aqui veem que está tão duro como lá. Que país é este onde as pessoas tem que sair das suas casas pra ter um trabalho e estudar?

O carioca Afonso Henriques Nunes morou seis anos em Natal, cidade do grupo Carmin. Conviveu com a classe média e as comunidades mais pobres. Assistindo “A Invenção do Nordeste”, reencontrou vários Brasis:

- Interessante é inventar uma coisa que não existe, mas que existe na verdade. É da gente ter que dar uma cara sempre às coisas mesmo que essa cara seja um pouco inventada. No Rio, há vários tipos de cariocas, assim como não existe um nordestino apenas, mas vários. Tive contato com a classe média de Natal, que segue o modelo aqui do Sudeste. Mas quando morei na Vila de Ponta Negra foi que achei a essência do nordestino porque essa essência está nas pessoas de baixa renda. É na simplicidade”, diz.

A primeira surpresa do público é lidar com a história”, destaca diretora da peça

Após o espetáculo, os atores e a diretora foram ao encontro do público. Uma banca com camisetas, canecas, livros e outras lembranças da peça ajuda a pagar os custos da viagem do grupo Carmin, que arrisca a vinda sem uma renda fixa, mas apostando na bilheteria. No contato com os artistas, o público vai contando as impressões da história.

Segundo Quitéria Kelly, a história do Nordeste inventado é o que mais surpreende a plateia:

- O que mais chega pra gente do público é a descoberta da história que eles não conheciam. Não apenas do Nordeste, mas do país. As pessoas chegam admiradas como não conheciam antes. Não sabiam, por exemplo, que Padre Cícero era esse coronel, que mandava e desmandava, extorquia prefeitos, que mandava matar. A primeira surpresa é lidar com a história que não é contada pela elite branca, mas por quem está do lado de cá. É a história que a história não conta. E como não é uma história datada, que tem inicio meio e fim, ela continua porque trazemos novos coronéis. Então não é um fato distante do público, aconteceu agora.

A Invenção do Nordeste se vale de vários recursos durante a narrativa, como vídeos que tanto resgatam o passado como pontuam, a exemplo do que diz a diretoria do espetáculo, que a história continua. A cena dos novos coronéis citada por Quitéria se refere a uma briga entre os senadores Renan Calheiros (AL) e Tasso Jereissati (CE), na época em que o Senado Federal era presidido por José Sarney, três coronéis tradicionais do Nordeste e da política nacional.

A diretora cita Augusto Boal para reafirmar a necessidade de inserir o público na história:

- Augusto Boal falou uma vez que a massa gosta de futebol porque entende as regras, se vê como parte e se sente à vontade pra opinar. Quando você abre a história para que ela insira seu pai, seu avô... o Sarney, você coloca as pessoas dentro da obra”, conta.

A plateia carioca se envolveu com o espetáculo. Os atores foram interrompidos diversas vezes por aplausos. O público também reagiu às gargalhadas ante as ironias usadas no texto. Até o silêncio foi diferente, segundo conta o ator Mateus Cardoso:

- Acho que a gente nunca tinha conseguido, como conseguimos hoje, puxar um suspense tão grande como na hora da revelação do ator escolhido. Deu pra ouvir o silêncio total no teatro”, disse.

Mateus diz que o espetáculo pega o público tanto pelo humor, pela narrativa e pela política:

O humor é muito forte no Rio de Janeiro, mas a narrativa também chega, o drama, as pessoas se sentem dentro do espetáculo. E é muito inteligente da dramaturgia trazer o humor e o drama pra só depois jogar a política”, disse o ator, que aprendeu as especificidades do Nordeste trabalhando na peça:

“Ler a tese de Durval, primeiro arromba a cabeça de qualquer pessoa. Esse trabalho já está traduzido para o inglês, francês e espanhol. Ele fala de identidade e isso mexe com a cabeça de todo mundo. E eu descobri no palco essas coisas que eu faço na peça”, conta.

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