Os limites do humor
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Os limites do humor

24 de julho de 2019
Os limites do humor

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A propósito do último artigo que aqui publiquei (“O peso das palavras”), recebo de um gentil leitor do Saiba Mais um link para o vídeo de um debate entre as turmas do Pânico e do Choque de Cultura (veja aqui)

A referência soou em mim imediatamente como mote para uma discussão que, como pesquisadora das manifestações humorísticas, há tempos me persegue: os limites do humor.

Este é, aliás, o título que dá nome a uma coletânea de artigos do Prof. Dr. Sírio Possenti, da UNICAMP, um dos principais pesquisadores brasileiros do humor. Publicada pela primeira vez em 2004, a coletânea apresenta um dos artigos (“A linguagem politicamente correta e a análise do discurso”) em que o professor sugere a seguinte reflexão:

Os estudantes de uma universidade devem ser selecionados apenas através de provas, idênticas para todos os candidatos, ou as vagas devem ser distribuídas por quotas proporcionais entre as diversas etnias e opções sexuais? Ainda é razoável que em inglês as mulheres sejam designadas pela palavra “woman” e as pessoas pela palavra “person”, ou a presença nelas de segmentos como “man” e “son” exigiria que fossem abandonadas e substituídas por outras, que não contenham segmentos semelhantes e não produzam certos efeitos de sentido? Tais questões estão sendo propostas em conjunto, e acompanhadas de outras, na defesa de um comportamento, inclusive linguístico, que seja politicamente correto. O movimento inclui em especial o combate ao racismo e ao machismo, à pretensa superioridade do homem branco ocidental e sua cultura pretensamente racional. Estas são, digamos, as grandes questões. Mas o movimento vai além, tentando tornar não marcado o vocabulário (e o comportamento) relativo a qualquer grupo discriminado, dos velhos aos canhotos, dos carecas aos baixinhos, dos fanhos aos gagos, passando por diversos tipos de “doenças” (lepra, aids etc.). É um movimento confuso, com altos e baixos, e comporta algumas teses relevantes, outras extremamente discutíveis e outras francamente risíveis.

Do que se pode (ou deve-se) rir? Por muito tempo, essa discussão me pareceu se restringir à seara da ética e, na condição de linguista, eu me interessava mais pelos procedimentos de linguagem que visavam ao riso. Abstendo-me de cair nas classificações possíveis para os tipos de riso (quem faz isso muito bem é o russo Vladimir Propp em livro intitulado “Comicidade e Riso”), eu antes me ocupava sobretudo com os mecanismos discursivos e linguísticos por meio dos quais seria possível desencadear o riso, tais como duplos sentidos e condensações, deslocamentos e desvios de raciocínio, ironias e implícitos, hipérboles e exageros, metáforas e comparações e por aí vai...

Hoje já não sei. Esta época é de tanto retrocesso social e político que eu volto atrás em algumas de minhas convicções e hoje penso que sim, também o humor é espaço de luta e de tomada de posição. A esse respeito, aliás, remeto a leitora (pessoa) a um textinho bastante didático: uma carta aberta às pessoas humoristas do Brasil (aqui), de Alex de Castro, o Xandelon da Revista Mad Brasil.

Em linhas gerais, o que Alex de Castro defende é que, se contamos piadas que zombam de negros, mulheres e gays, por exemplo, de alguma forma compactuamos com uma cultura racista, machista e homofóbica, cultura que é mais que opressora, é também assassina. Exageros à parte, com muita propriedade, o autor assinala: “o humor não tem que ter limites. O que a gente tem que ter também é uma crítica ilimitada”. Criticar piadas que reiteram estereótipos e estigmas que diminuem certos grupos étnicos e sociais, assim, não é atuar como “patrulha”, mas sim exercer o direito à liberdade de crítica. E completa: se é pra se fazer pouco de alguém (personagem ou grupo) – o riso de zombaria do qual falou nosso amigo russo Propp – que seja de pessoas que agridem e não das que são histórica e sistematicamente agredidas (como negros, mulheres e gays, por exemplo).

Zombemos, pois, de opressores e não de oprimid@s. Talvez por isso me incomode a comparação de Bolsonaro com Bozo. Palhaços, como artistas do riso, merecem nosso máximo respeito.

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