Bacurau: resistência e revolução
Natal, RN 29 de mar 2024

Bacurau: resistência e revolução

17 de setembro de 2019
Bacurau: resistência e revolução

Ajude o Portal Saiba Mais a continuar produzindo jornalismo independente! Apoie com qualquer valor e faça parte dessa iniciativa.

Quero Apoiar

Por Pedro Feitoza*

O professor e historiador Durval Muniz escreveu uma crítica do filme Bacurau em que questiona a calorosa recepção do filme como manifesto de resistência por setores mais à esquerda do espectro político. De título "Bacurau: será mesmo resistência?" a crítica é completa, analisando desde o arco autoral do diretor, as escolas artísticas ao qual o filme rende tributo, passando pela construção das personagens, pelo imaginário cultural e referências visuais, até a função gramática do longa na elaboração de um novo imaginário político. No que pese as inúmeras contribuições que Durval nos oferece com suas reflexões abrangentes, gostaria de apresentar um contraponto à tese central defendida pelo historiador. Por ora, optei por deixar de lado divergências e convergências que considero secundárias face à tese central, porém não menos importantes do ponto de vista da expressão artística do filme.

A tese principal de Durval é que "em muitos aspectos, [o filme] presta um enorme desserviço para a necessária elaboração de um novo imaginário político por parte das forças da esquerda. Ao repor, talvez até com a intenção de mostrar o sem sentido, nos dias que correm, desse imaginário da revolução, ou, talvez apontando para sua ausência nos dias que correm, e a falta de sentido da violência em que vivemos (o que é dito pela canção de Vandré que pontua a trama), Bacurau termina por ter uma recepção que recoloca em circulação esse imaginário, num momento em que a o fascismo e sua apologia da morte e da violência dominam o país”.

Para Durval, é questionável o papel atribuído ao filme como símbolo de resistência. Ao recorrer ao que nomeia de “imaginário da revolução”, definido como “imaginário da transformação radical da sociedade com uso da violência”, o filme terminaria por se aproximar do fascismo e sua apologia de morte e violência que dominam o Brasil atual. Aproximação que leva Durval a sintetizar o seu incômodo na pergunta: "Não estaria na hora das esquerdas enterrarem o imaginário jacobino da revolução, e produzirem outro imaginário que não leve água para o moinho da legitimação da morte, do derramamento de sangue, da desumanização do outro, daquele considerado inimigo, tão presentes no imaginário das forças reativas e reacionárias?”

Antes de continuar, é necessário um alerta. Em nenhum momento de seu texto, Durval fundamenta sua tese para além dos elementos que seleciona do próprio filme. Ele não cita qualquer exemplo de que o filme foi de fato recebido da forma como descreve. Ele não referencia qualquer outro texto, crítica, entrevista ou discurso de qualquer outra pessoa sobre o apreendido do filme. Na verdade, a sua tese é uma leitura que ele mesmo faz do longa e do imaginário que possivelmente ele acredita que o filme mobilize.

Na minha opinião, a tese central da crítica formulada pelo professor é simplesmente equivocada. É o próprio Durval quem mobiliza o imaginário da revolução enquanto transformação radical da sociedade com uso da violência. E o faz com a óbvia intenção de combater ideias das quais discorda, mas que nada tem relação com o filme em questão. É como um ilusionista que finge tirar a moeda da nossa orelha, quando na verdade tira do próprio bolso.

O filme, na verdade, mobiliza o imaginário da revolução enquanto transformação radical da sociedade através da afirmação da vida e da existência contra a tirania e a violência. Em uma palavra, resistência. Parece uma sutil diferença, mas que tem enormes consequências.  O que leva o professor a ignorar essa diferença é sua incapacidade de compreender a dialética proposta pelo filme, ao se mover através de inúmeras contradições, e também a sua conveniente decisão de omitir a descrição factual do acontecido no filme, mesmo que resumida, fundamento de qualquer texto que pretenda elaborar uma crítica válida no campo das artes visuais.

Em termos simples, o que de fato ocorre no filme?

Um pequeno povoado em situação de extrema pobreza começa a registrar diversos assassinatos de sua população por forças que ignora e que utiliza de tecnologia de vigilância remota (drones). Apesar da existência de conflitos na região (disputa pelo acesso à água), os motivos da série de assassinatos não são claros, ao mesmo tempo que o povoado se encontra, repentinamente, isolado sem qualquer comunicação efetiva com outras populações. Diante da situação, se compreende sob ataque e se autodeclara em estado de guerra, iniciando a preparação e organização necessárias para autodefesa. Com a vitória da população de Bacurau no desenrolar do combate, o que temos é a prisão do único inimigo sobrevivente e o exílio do prefeito da região, considerado traidor pela população.

Não há em qualquer momento do filme um apelo à “transformação radical da sociedade com uso da violência”. Se olharmos atentamente, antes do início dos ataques, a postura da população de Bacurau face ao poder político que tenta se impor, personificado na figura do prefeito, é de descrença e de auto-organização para enfrentar os desafios da extrema pobreza de forma solidária. Essa auto-organização da comunidade inclui e acolhe a todos, inclusive prostitutas e os considerados à margem da lei*.

A violência que enxergamos na tela do cinema não decorre por decisão da população local para disputa de poder político. É na verdade um recurso último de autodefesa e preservação da vida. É o que Paulo Freire nomeou de “justa raiva”, ou seja, a violência utilizada como defesa na afirmação da existência e da dignidade humana por aqueles que sempre foram vítimas de violências estruturais da sociedade.

Ora, se é verdade que é tese presente em todos os filmes de Kleber Mendonça Filho o fato de que o "passado da casa-grande e da senzala ainda não foi superado entre nós, seus fantasmas ainda habitam nosso presente, até mesmo nas sonoridades que ouvimos ao nosso redor e, notadamente, na violência extremada das nossas relações sociais", como afirma Durval, é verdade também que em Bacurau o passado daqueles que, em nossa história, resistiram a esses mecanismos de dominação e violência também se apresenta.

O que temos em Bacurau não é apologia à morte, ao contrário, é a apologia à vida e ao direito de existir de todos os seres humanos, sem exceções. Ao aproximar, forçosamente, Bacurau do fascismo e sua apologia da morte e da violência que dominam o país, acusando-o de promover um imaginário que justifica a morte e o extermínio do outro, não estaria Durval, lá no fundo, corresponsabilizando vítimas de violências pelos crimes cometidos por seus algozes?

Acredito que as perguntas que devemos fazer são profundamente distintas das formuladas pelo historiador Durval Muniz. Eu anteciparia algumas: O que seria do "professor negro e amoroso com as crianças ou da médica alcoólatra e barraqueira", com as quais Durval se diz solidário, se o povoado não tivesse se organizado para resistir e guerrear em defesa da própria vida? O que nós deveremos fazer quando o fascismo e a violência contra as organizações políticas e suas lideranças estão em ascensão? Qual o serviço que presta os intelectuais que deslegitimam o direito à vida e à autodefesa dos povos que estão sendo atacados pelos seus próprios governos?

A lição a qual o filme Bacurau nos conduz é aquela relembrada por Winston Churchill quando o Reino Unido debatia o que fazer face às provocações nazistas que culminariam na Segunda Guerra Mundial: "Se queres paz, prepara-te para guerra”. Por isso, ao contrário do historiador Durval Muniz, não tenho dúvida alguma que nos tempos em que vivemos, Bacurau é sim uma lição de resistência.

Pedro Feitoza é fotógrafo e mestre em Direito pela Universidade de Brasília 

As mais quentes do dia

Apoiar Saiba Mais

Pra quem deseja ajudar a fortalecer o debate público

QR Code

Ajude-nos a continuar produzindo jornalismo independente! Apoie com qualquer valor e faça parte dessa iniciativa.

Quero Apoiar

Este site utiliza cookies e solicita seus dados pessoais para melhorar sua experiência de navegação.