A judicialização da vida comum 
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A judicialização da vida comum 

31 de outubro de 2019
A judicialização da vida comum 

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* Por Luiz Cláudio da Silva Leite

Diferentemente do que costumamos pensar, o Direito não precisa se pautar em palavras difíceis e teses mirabolantes. Nesse sentido, com a judicialização da política, observa-se a popularização dos debates jurídicos nos encontros de família, comentários sobre julgamentos em mesa de bar e uma maior familiaridade com temas vistos outrora como técnicos.

Felizmente, o aumento da percepção do Direito na vida cotidiana possibilitou ampliar a discussão sobre temas importantíssimos que eram restritos quase que aos profissionais, pesquisadores e estudantes. Dentre as produções culturais que contribuíram recentemente para a difusão do debate, podemos citar: Olhos que Condenam[1] e 13ª Emenda[2].

Sem a menor pretensão de fornecer spoilers, os episódios demonstram o funcionamento do sistema de justiça criminal, a atuação do Estado na busca de culpados e a persistência de uma cultura autoritária ainda em vigor. E, apesar de retratar casos estadunidenses, pode muito bem ser utilizada como referencial para entender o que costuma ocorrer no Brasil.

Em Olhos que Condenam, observamos o processo que culminou com a condenação de 5 jovens negros acusados equivocadamente de estuprarem uma jovem no Central Park em 1989. E, apenas em 2014, foi possível constatar a inocência dos garotos com a realização de estudos de DNA que excluíram totalmente a conexão do grupo com o crime.

Por sua vez, 13ª Emenda desnuda o fracasso e os interesses escusos de uma política proibicionista de combate drogas. Abordando, também, a barbárie inerente ao Sistema Penitenciário e esclarecendo a ligação intrínseca entre a escravidão e a atuação da justiça criminal.

Nacionalmente, ao falar em erro judicial, os Irmãos Naves[3] e o Caso Bodega[4] surgem como exemplos do que deve ser evitado em uma investigação criminal, especialmente porque o ser humano desenvolve uma tendência psicológica de validar suas decisões e ideias anteriores, consolidando um verdadeiro primado das hipótese em detrimento dos fatos[5].

Diante disso, o cinema nacional retratou o drama protagonizado por Sebastião José Naves e Joaquim Naves Rosa ao longo do filme intitulado O Caso dos Irmãos Naves, dirigido por Luís Sérgio Person e Jean-Claude Bernardet em 1967.

Surpreendentemente, em meio a ditadura militar, o filme retrata abertamente os fatos ocorridos em 1937 no meio do Estado novo e relata sessões de tortura, as ameaças e perigo do autoritarismo inerente a anuência com um Estado Policial que ainda hoje insiste em se perpetuar.

Nesses contextos, é fundamental que o Poder Judiciário consiga se manter imparcial e adotar posturas contra majoritárias, mesmo quando a comoção social causada por crimes graves e a solidariedade natural e justa ao sentimento de dor das vítimas e de seus familiares.

Não obstante, em face ao aumento da violência e do sentimento de insegurança, a reflexão crítica sobre as soluções messiânicas propostas – como o Pacote Anticrime – e a construção de alternativas realmente democráticas são medidas urgentes para todos os progressistas.

Sobretudo porque a Lei ainda representa, ainda que de maneira limitada, uma garantia mínima disposta, particularmente, para aqueles que costumam ser estigmatizados, violentados e perseguidos por inúmeras circunstâncias políticas, econômicas, sociais e culturais.

A título de exemplo, ressalte-se que, a Defensoria Pública[6] apresenta mais de 40% dos recursos nos tribunais superiores e também uma maior taxa de sucesso, quando comparada a atuação de Advogados[7].

Logo, pode-se perceber que a afirmação de que as parcelas mais vulneráveis da população não chegam aos tribunais superiores e que a decretação da prisão apenas com o fim do processo teria como objetivo a proteção de políticos e empresários não procede.

Assim, mesmo com todas as injustiças em um contexto criminalização da pobreza, da política e dos movimentos sociais, observa-se que o direito ainda pode ser um aliado na efetivação da cidadania, desde que utilizado sem idealismos.

* Luiz Cláudio da Silva Leite é Membro do Contraditório

[1] When They See Us (Olhos que Condenam) é uma minissérie estadunidense do gênero drama, criada por Ava DuVernay e distribuída pela Netflix que estreou em maio de 2019.

[2] 13th (13 ª Emenda) é um documentário estadunidense de 2016 dirigido por Ava DuVernay e escrito por DuVernay e Spencer Averick.

[3] SILVA, Camila Garcia da. O CASO DOS IRMÃOS NAVES:“TUDO O QUE DISSE FOI DE MEDO E PANCADA...”. Revista Liberdades. IBCcrim. N.º 04. Maio/Agosto - 2010. Disponível em: <http://www.revistaliberdades.org.br/site/outrasEdicoes/outrasEdicoesExibir.php?rcon_id=58>. Acesso em: 30 out. 2019.

[4] PAGNAN, Rogério. Investigação secreta da PM paulista mudou destino de jovens presos injustamente: 'Caso Bodega', ocorrido há 23 anos, é conhecido como um dos grandes erros de investigação da polícia paulista. Disponível em: <https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2019/10/investigacao-secreta-da-pm-paulista-mudou-destino-de-jovens-presos-injustamente.shtml>. Acesso em: 30 out. 2019.

[5] CORDERO, Franco. Guida alla procedura penale. Torino: UTET, 1986. p. 51

[6] Instituição Pública mantida pela União ou pelos Estados responsável por prestar assistência jurídica gratuita para pessoas sem recursos financeiros para constituir advogados ou que integram um determinado grupo de vulnerabilidade social.

[7] “Esse número não indica que o defensor é melhor que o advogado. Indica que quem procura a Defensoria sofre mais constrangimentos ilegais. A maioria da injustiça está nas parcelas mais pobres, que não têm dinheiro para pagar advogado", afirma o defensor público Rafael Muneratti. DANTAS, Dimitrius. Defensoria Pública é responsável por quase metade dos recursos apresentados em instâncias superiores. Disponível em: <https://epoca.globo.com/brasil/defensoria-publica-responsavel-por-quase-metade-dos-recursos-apresentados-em-instancias-superiores-24048594?versao=amp&__twitter_impression=true>. Acesso em: 30 out. 2019.

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