Da arte de contar contos
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Da arte de contar contos

11 de novembro de 2019
Da arte de contar contos

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Costuma-se pensar que a “verdade” das línguas está nos dicionários. Assim, por exemplo, para definir o que é conto podemos nos valer do palavreado do Houaiss: “história curta em prosa, com um só conflito e ação”.

Sim. Mas há também outras definições, definições, aliás, que fazem mais minha cabeça para o que seja conto. Gosto especialmente de três: primeiramente, a do modernista Mário de Andrade, com sua definição bem libertária: conto é o que você quiser chamar de conto... Depois, a do escritor e crítico literário Ricardo Piglia, para quem um bom conto revela ao leitor, no final da narrativa, que outro conto estava ali latente, subterrâneo, contando-se sem que se percebesse... E, por fim, a do contista cearense Moreira Campos, definindo conto a partir de uma comparação com o romance, para o que faz uso de uma imagem bem poética: enquanto o romance está para uma frondosa árvore, o conto estaria para um único galho. Atrevido. Esticando-se na condição de desdobramento de árvore, pequeno ser que ousa contar a vida, curta e intensamente.

Eu, como ser vivente e pretensa contista, adoro quando surge (nos muitos nichos de mercado, nas resenhas de revista e conversas em geral, no meu caminho pessoal) um livro de contos. Adoro, como leitora e autora, esbarrar nessas narrativas curtas que extrapolam o mundo por meio da arte literária. Como indagou Nietzsche em A Gaia Ciência, também eu me pergunto: “de que vale um livro que não nos transporte além dos livros?”

Ando às voltas com três livros de contos, devagar, mas sempre: um, presente de Volonté, último título lançado por Racine Santos: “...De susto, bala ou vício”. Já conhecia a escrita de Racine, inclusive li recentemente o ótimo “Para mal bebedor, meia garrafa basta”, editado pelo grande editor Carlos Lima, da CLIMA Edições. Mas Racine está na minha fila em terceiro lugar porque no meu segundo ranking estou lidando (como disse, devagar e sempre) com o mais recente livro de Cefas Carvalho, de quem sou entusiasta, como pessoa, jornalista e escritor. No seu “Noite passada eu sonhei que alguém me amava”, aliás, alguns contos confirmam a tese do Piglia, acima citado, tal como, logo de cara, o “Café frio”. O primeiro dos livros de contos, no entanto, que anda me prendendo o fôlego, também presente, ganhei de um amigo muito querido vindo lá de alhures, um bom amigo e um grande leitor. Chama-se De repente, uma batida na porta (Rio, ed. Rocco, 2014), do israelense Etgar Keret, e a mim surpreendeu na arte de contar contos. Um dos muitos contos dos quais mais gostei chama-se “Na terra da mentira”, em cujo enredo encontramos um típico cidadão comum que vê todas as suas mentirinhas banais contadas no dia-a-dia realizando-se inexplicavelmente.

É que, conforme já dizia Clarice Lispector (e desculpem o clichê), viver ultrapassa todo entendimento. E, ainda assim, tentamos, e talvez por isso escrevemos, lemos, sofremos e gozamos com literatura, poesia, romances, contos... Penso, assim, em toda uma gama de possibilidades de definições para tipos de contos: românticos, regionalistas, de terror, de humor, de ficção, de mulheres... Contos fantásticos, contos eróticos, contos minimalistas, contos bonitinhos, contos ordinários etc. e tal. Contos, enfim, de mil e uma maneiras que nos permitam não só extrapolar nosso mundinho tangível e palpável, mas também tentar uma forma mais precisa possível para dizer (e entender) tanta imprecisão.

Ocorrem-me, então, os contos de caráter – como dizer? – político. Que contos poderiam dizer a realidade em que milicianos em conluio com empresários de Deus estão no comando? Quais seriam os contos que contam dos julgamentos sumários de revanchismo e ódio de realidades golpistas, desumanas, desiguais? Contos em que índios, negros e mulheres, com vozes dissidentes, são exterminados e silenciados em relações covardes de poder?

Parodiando o filósofo Nietzsche acima referido, também sem a literatura a vida seria um erro, uma realidade pesada demais para se viver. Mitos, fábulas, anedotas, é preciso reinventar o real por meio da arte de contar contos.

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