Sobre concursos e competições
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25 de novembro de 2019
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Para que serve uma competição literária? Dos grandes concursos de academias consagradas com muita pompa e circunstância às pequenas batalhas de slam nas quebradas de muitas periferias, para que (e para quem) serve uma competição literária?

Bom, pode-se pensar que se trata de um exercício a mais por meio da qual se organizam os nichos da cultura e da sociedade, com suas muitas práticas e relações, com seus dispositivos e gêneros discursivos preferenciais. Por exemplo: o campo da política se operacionaliza por meio de convenções de partido, carreatas e comícios, santinhos e surubas eleitorais, projetos, decretos e leis etc. etc. Já na literatura, seus sujeitos (autores, editores, leitores, revisores, tradutores, agentes literários, livreiros etc.) se mobilizam através de feiras e festivais, saraus, lançamentos e encontros com o autor, contratos editoriais, resenhas em revistas e jornais, publicação de uns, exclusão de outros etc. e tal.

Acontece então que, também por meio desses dispositivos e gêneros, relações de acordo e de desacordo se deflagram, sujeitos tentam se legitimar, já outros resistem, uns se locupletam enquanto tantos outros permanecem invisíveis. Mais ou menos como uma “guerra” à maneira dos estabelecidos versus outsiders de que falou Norbert Elias.

Neste ano, mais uma vez, a Fundação Capitania das Artes em Natal promoveu um concurso literário nas categorias de ficção, poesia e ensaio. Aparentemente, um motivo para comemorar. Comemoremos, afinal, o poder público deve nos proporcionar esse retorno, até mais, inclusive. Toda e qualquer política pública de fomento à literatura pode ser bem-vinda. Mas, após a experiência do ano passado, em que um professor de educação física do município participou da comissão julgadora, eu particularmente não dou muito crédito. Não que um professor de educação física não possa ser um bom leitor e conhecedor das Letras, mas se o edital exige, de seus candidatos, expressividade na vida literária da cidade, por que não exigir também de seus jurados?

Como se já não bastasse isso, outro fato se repetiu neste ano: a pessoa contemplada no primeiro lugar de poesia, tal como no ano passado – curiosamente, duas mulheres – teve seu livro desclassificado porque um nome dos que não foram agraciados com a premiação entrou com recurso, supostamente com base em alguma brecha acenada pelo edital.

Eu compreendo que quem se mobilizou nesse sentido tem todo o direito em fazê-lo, mas confesso também que, ao imaginar o quanto de tempo e energia uma pessoa empreende na tarefa de desclassificar alguém, ocorre-me imediatamente a noção de “espírito ressentido” de que fala Nietzsche: aquele ser que sente que “alguém deve ser responsável pelo meu mal-estar”. Mas, ressentimentos à parte, eu volto à questão: para que serve (ou para quem) uma competição literária?

Lembro, a esse respeito, o caso célebre de Lima Barreto, que certa feita candidatou-se a uma vaga na Academia Brasileira de Letras. Assim explica Francisco de Assis Barbosa, o primeiro biógrafo do escritor (pobre, negro, boêmio e louco) marginalizado pelos “pares” de sua época:

Lima Barreto chegaria mesmo a exigir do mundo burguês uma verdadeira reparação, candidatando-se na vaga de Emílio Meneses à Academia Brasileira de Letras. (...) A Academia, porém, não lhe quis abrir as portas.

A necessidade de ser reconhecido e de se afirmar como “verdadeiro” escritor será saciada por uma premiação? Os critérios de tal elegibilidade serão definitivos? Será de fato uma lista de classificados “infalíveis” (eleita muitas vezes por alguns seres também com sua dose de falibilidade) que vai dizer, em tom absoluto, o valor que um ficcionista, ensaísta ou poeta tem?

Parafraseando o artista plástico Marcelus Bob, que diz “quem é bonito é bonito”, eu diria: quem escreve, escreve. Não será um concurso literário que vai afirmar a “verdade” final sobre isso. E, na maioria das vezes, o tempo é o melhor juiz.

Lima Barreto que o diga.

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