A Bandeira Vermelha
Natal, RN 23 de abr 2024

A Bandeira Vermelha

25 de janeiro de 2020
A Bandeira Vermelha

Ajude o Portal Saiba Mais a continuar produzindo jornalismo independente! Apoie com qualquer valor e faça parte dessa iniciativa.

Quero Apoiar

Os que amam os cordões de outras cores me perdoem, mas o vermelho, sempre foi a cor mais quente. Até entendo quem ama o azul, o verde ou o amarelo, mas, no campo da política ou do futebol tenho ressalvas profundas com as dicotomias em branco e preto. A falta do vermelho em uniformes e bandeiras sempre me soou como uma marca de um certo raquitismo cromático, uma carência passional, que joga pela linha de fundo o signo mais significativo de nosso vigor: o sangue.

Não sei se é só uma questão de semiótica, mas o fato é que, no século XIX, quando ficou claro que o novo mundo nascido das revoluções liberais não conseguiria entregar as promessas da revolução francesa, foi ela, a bandeira vermelha, que carregou a esperança de uma reedição do acontecimento revolucionário.

Mas não foi apenas como um desmembramento da bandeira tricolor da república francesa que emergiu o cordão encarnado. Foi também das prisões do regime de Robespierre que saíram, ao fim do período do terror que se seguiu a decapitação do rei Luís XVI, três personagens centrais para a composição daquilo que no século XIX veio a se chamar de comunismo.

François-Noel Babeuf, François Marie Charles Fourier e Claude Henri de Saint Simon conheceram a experiência da prisão durante os anos mais difíceis da revolução. A história não seria a mesma se tivessem conhecido a guilhotina.

Babeuf foi um “cristão novo” da luta popular, convertido à causa revolucionária tardiamente. Antes dos acontecimentos de julho de 1789 trabalhava para nobres franceses, pesquisando arquivos feudais e instrumentalizando seus patrões para que pudessem explorar pequenos camponeses pobres.

Foi em meio a poeira dos arquivos do senhorio feudal que ele teria descoberto os “horripilantes mistérios da usurpação” perpetrados pela casta aristocrática. Esse contato com uma espécie de obscenidade original, um conteúdo velado, posto fora da cena que emergia do discurso social oficial, empurrou Babeuf, durante os anos mais intensos da revolução em direção ao radicalismo dos Sans-culottes.

Essa fração da população francesa consistia à época na parte mais baixa do imaginário social. Fora da dignidade feudal dos camponeses, que mesmo pobres eram considerados parte da tripartição básica do mundo medieval (junto ao clero e a nobreza proprietária de terra), os “sem calção” (uma espécie de alcunha para os “descamisados” ou “excluídos” dos dias de hoje) cultivavam durante a revolução um ideário de igualdade radical que foi traduzido por Babeuf para o movimento operário que se expandiu no decorrer do século XIX.

Se dos Sans-culottes, considerados radicais e perseguidos pelos próprios jacobinos, emerge para o cordão encarnado o imaginário de uma intransigente igualdade; através de Fourier, outro preso político do jacobinismo, aparece a noção de um comunitarismo laboral.

Fourier rejeitava a ideia de que um tipo qualquer de violência revolucionária sagrada poderia levar a um estado de igualdade radical. O seu foco estava na ideia de uma metamorfose emancipatória do trabalho, de uma apropriação dos mecanismos de produção da riqueza que pudesse transformar a recém-nascida sociedade industrial em um campo fértil para a expressão e a autorrealização das potências individuais e não, um gigantesco mecanismo de opressão movido por um maquinário monstruoso de exploração e extração da força vital dos trabalhadores.

O terceiro elemento, Saint-Simon, era, por sua vez, filho de um aristocrata de família ducal. Durante sua experiência nas masmorras jacobinas mergulhou na tentativa de explicar de modo “científico” o fracasso da experiência revolucionária. Sua conclusão dizia respeito justamente a noção de que não seria possível imaginar uma ordem econômica nova que não se envolvesse na produção de “coisas úteis”. A experiência de emancipação política não poderia desta forma, ser empreendida, sem uma emancipação econômica planejada de modo racional para que fosse possível atender as demandas básicas e essenciais da vida dos mais pobres.

Essa construção tripartida, que envolvia a noção de um igualitarismo radical temperado pela violência revolucionária, unida a uma noção de transformação do trabalho industrial tomado como uma experiência de autorrealização em um contexto de produção comunitária e um planejamento técnico da produção econômica no sentido de prover as necessidades básicas das pessoas poderia ter seguido em vias separadas.

Essas visões poderiam ter se diluído no conturbado oceano político daqueles anos. Cada um desses homens observou sua própria época a partir de uma perspectiva particular. A partir de suas próprias celas conceituais. Visualizando um cenário no qual o novo fenômeno de uma sociedade industrial podia ser compreendido e transformado a partir da chave interpretativa que eles mesmos propunham.

O fato é que lá pela metade do século XIX a bandeira vermelha já estava hasteada, configurando-se um novo ponto de confluência para a ansiedade revolucionária e os desejos de luta e transformação que movimentam a história em seus anos de embriaguez.

Essas três vias básicas gestadas no burburinho do fracasso da experiência jacobina e nas masmorras do terror, haviam frutificado, desdobrando-se em novos “ismos” (socialismo, comunismo, anarquismo), irmãos de sangue do “liberalismo”; filhos legítimos de um iluminismo que precisava ser radicalmente transformado para não padecer com sua caducidade cada vez mais evidente.

Uma das coisas que precisamos ter em mente, nesses anos em que as bandeiras vermelhas assombram tanto a sensibilidade conservadora (até como uma forma de apaziguar a neurastemia de alguns observadores mais afoitos da cena política) é que a experiência das revoluções que se seguiram à queda da bastilha não nasceram de uma espontaneidade natural, mas sim de uma formulação teórica que mergulhou fundo nas razões do fracasso das revoluções anteriores e que sintetizou, de modo bastante cuidadoso, as três vias que emergiram das prisões de Robespierre.

Certamente a bandeira vermelha não teria tido essa importância toda, e sua presença nas ruas do mundo, dois séculos depois, não causaria tanto medo naqueles que tem muito a perder com as mudanças radicais, se um judeu alemão não tivesse mergulhado fundo na tarefa de sintetizar e compreender teoricamente o mundo que o circundava.

Karl Marx, como todo filósofo forte, começou desrespeitando as próprias prescrições. Ele percebeu cedo que para começar a mudar o mundo, seria preciso antes compreendê-lo. Mas essa é uma outra história.

Apoiar Saiba Mais

Pra quem deseja ajudar a fortalecer o debate público

QR Code

Ajude-nos a continuar produzindo jornalismo independente! Apoie com qualquer valor e faça parte dessa iniciativa.

Quero Apoiar

Este site utiliza cookies e solicita seus dados pessoais para melhorar sua experiência de navegação.