Ah, os livros…
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Ah, os livros...

6 de janeiro de 2020
Ah, os livros...

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Ah, os livros... Como diria aquele sábio presidente daquela distopia tupiniquim, os livros são aquele monte de amontoado de coisa escrita... Além dessa observação brilhante, sem os livros, certamente a vida seria muito mais difícil de se suportar e é por isso que creio que eles – tal como elogio de mãe em Carta Registrada, risada de filh@ no Skype ou sussurro de amor em áudio de WhatsApp – são uma das melhores invenções da humanidade.

Ano novo, vida nova, reza a lenda. E no balanço das horas, vou também eu fazendo o meu balanço dos livros que, para mim, neste famigerado ano de 2019 (o ano em que caímos em desgraça), foram aqueles mais fodásticos, os livros que, na minha lista pessoal e intransferível, foram de palpitar veia, dilatar pupila, acelerar coração.

Eu, como contista, começo pelo livro de contos. Adoro contos, quem me conhece sabe. Adoro o poder de síntese que eles podem ter. Adoro essa verdade imemorial de narrar e narrar-se que uma história curta e precisa pode conter. Neste ano que passou, esbarrei em bons livros de contos, mas o melhor de todos foi a versão sertaneja de Edgar Allan Poe revisitado: “Agouro”. De Márcio Benjamin, um advogado (nem tudo é perfeito), publicou pelo selo Escribas e tem capa primorosa de Shiko, ilustração daquilo que toma a gente e não tem explicação, nada além do horror, o horror... Aquele livro que faz a gente sentir, arrepiar-se e dizer, em vários idiomas e dialetos: “ah livrinho bom filho de uma égua!”

Vou citar três motivos.

O primeiro: a linguagem propriamente dita. Tudo bem, alguém, mais chato e careta, pode vir dizer que gostei só porque me criei (nas férias escolares) tomando banho de açude, chupando bagaço de cana, debulhando feijão verde e acordando com a fumaça do fogão a lenha de minha avó Maria Pinto Muniz lá nas bandas da Água Verde e dos Tanques, quebradas do Ceará. Nas noites de muitas estrelas e muriçocas, eu ouvia estórias de horror e talvez por isso esteja acostumada com aquele linguajar. Podem dizer que é só uma questão de identificação, que pessoa lá do frio da Suécia não haveria de se emocionar.

Uma ova, seu cabra.

O “Agouro” tem umas expressões e frases certeiras que estão muito além dos regionalismos, são para quem souber ler e entender, interpretar as sutilezas da língua e se deixar dominar por essas duas coisas sem explicação: terror e literatura.

Chegue, tome com cuidado que eu vou esfriando.

Arrede daqui, miserável!

São tantas as frases, os diálogos, as palavras e as expressões que eu poderia citar com sal de carne seca e doçura de rapadura que este artigozinho não teria como falar como o enredo vai se contando, como a gente vai encarnando personagens, como a gente vai se projetando para aquele lugar e aquele tempo da ficção (?) de Márcio Benjamin. Só sei é que, no embalo da sua narrativa, de repente, feito fantasma e testemunha ocular, estamos lá. E entendemos tudo.

O segundo: lembrando que não há hierarquia nenhuma nessa ordem de fatores (que não altera o resultado), eu digo o que me puxou pelo vestido, agarrou meus cabelos e não me largou enquanto eu não terminasse o livro: os temas. Aqueles temas que qualquer humano pode saber e sentir: filho ou noivo perdidos, fatalidade da fome e vexame da vingança, desespero, angústia, solidão. Ele conta um pouco de um tudo em seus quatorze contos. E é aí que preciso me deter em um deles, especificamente, aquele que me cortou certeiro feito facão afiado (juntamente com o “Açude”): o conto da página71 (que li na estrada), “Sabedoria Popular”.

A começar pelo título, fina flor de ironia (lembrando que fui irônica mais acima). Sem querer estragar a surpresa de quem não leu e talvez, quiçá, lerá, eu diria a leitores do devir que se preparem para ver, em cortantes linhas, conto que conta como uma maioria deixa de ser democracia e se torna turba tosca, sobretudo quando quem está do outro lado da ponta-balança são mais desvalidos e fragilizados: pobres, fêmeas, infantes. Tal qual numa distopia tupiniquim de sertão.

E, por fim, o meu terceiro argumento: um livro é sempre um livro, esse objeto que nós encontramos e que nos encontra de repente, mesmo que há tanto tempo nos esperasse esse encontro. Eu não conhecia o autor, mas me lembro bem da entrevista que ouvi no noticiário de meio-dia da Rádio Universitária, num dia qualquer, quando eu também pelejava com meus escritos. Ouvi a conversa e pensei: taí um livro que eu vou ler... Eis que eu o encontrei enfim no FlipAut!, o festival literário da Pipa que eu adoro, encontro literário articulado por Jack D`Emilia há dez anos, ao qual retornei depois de um pequeno intervalo. Foi lá que eu enfim encontrei o livro e ele enfim me encontrou, eis aí o melhor motivo para eu dizer que o “Agouro” foi o livro de contos de 2019 que me marcou.

Não precisa ser leitor de H. P. Lovecraft ou Mary Shelley, não precisa ser leitor do SaibaMais, basta ser leitor para saber e sentir que os livros estão aí no mundo de todas as formas para nos dar mel e medo, para nos lembrar que o país pode ser também um conto de horror, mas também de aventura e de transformação.

P.S. Ninguém perguntou, mas vou continuar com minha listinha de livros preferidos neste ingrato ano de 2019. E já que citei o frio da Suécia, vou falar no próximo artigo do meu livro preferido de poemas, outro que ecoa também lá do sertão.

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