Além dos desalentados, a sociedade dos enganados
Natal, RN 29 de mar 2024

Além dos desalentados, a sociedade dos enganados

4 de fevereiro de 2020
Além dos desalentados, a sociedade dos enganados

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Avenida Prudente de Moraes em Natal. Semáforo fechado e, como em toda cidade brasileira, ambulantes percorrem, no espaço de tempo ínfimo entre o vermelho e o verde, os corredores de carros, em busca das janelas que lhe ofereçam algum trocado.

Como cariocas, natalenses também não gostam de sinais fechados. Mas eu, com a distração quase poética inerente às piscianas (exceto em momentos de pura pressa), aproveito para olhar as pessoas, os letreiros, os canteiros.

E foi em uma dessas observações que me chamou a atenção um vendedor ambulante de paçoquinhas com uma plaqueta pendurada ao pescoço com os seguintes dizeres: “Desempregado? Não. Microempresário: Sim.”

A poeticidade do olhar foi embora rapidinho.

Embora sabendo como o capitalismo opera com seus aparelhos ideológicos, não deixa de ser estarrecedora essa cruel constatação do que o velho Marx categorizou como ideologia – isso que faz com que um sujeito, destituído de sua cidadania, desprovido de todos os direitos pela ação do próprio capital, tenha a ilusão de que se auto intitular “microempresário” por estar vendendo paçoquinhas nos semáforos lhe retire a condição de subcidadão numa sociedade cujo sistema econômico destrói o emprego, destrói os direitos sociais, destrói a dignidade humana, destrói a esperança.

As últimas pesquisas do IBGE revelaram uma nova categoria dentre os brasileiros: a de “desalentados” – aqueles que de tanto procurar emprego e não encontrar, desistiram de buscá-lo. Alguns descambam para atividades informais, não por escolha, mas por imposição da ausência de emprego.

Por outro lado, o discurso do empreendedorismo, propagado com força no nosso mundo neoliberal, produz em parcelas desses sujeitos a falsa ideia de que a saída individual vai lhes ser redentora, abrindo caminhos para uma vida endinheirada e fugaz. Mesmo a realidade nua e crua que os faz consumir suas vidas dia a dia sob sol, fumaças, humilhações, cansaços, incertezas e precariedade na moradia, na alimentação, no atendimento à saúde, no acesso à educação, na ausência de salário, de gozo de férias, etc, parece não ser suficiente para fazê-los confrontar esses esquemas ideológicos. Esse labor que não tem fim (usando aqui a categorização da victa ativa de Hannah Arendt), limitado à sobrevivência, acaba sobrepondo-se ao trabalho – atividade por meio da qual o ser humano dignificaria sua vida (“e sem o seu trabalho, o homem não tem honraaaa...”) e produziria o próprio mundo – tal é a deterioração dessa esfera social. Se o trabalho perde o sentido – o que talvez explique parcialmente a cooptação da juventude para o crime, por exemplo – mais perde sentido a esfera da ação, esta que religa os seres humanos naquilo que também o capital busca destruir, que é a política – embora os capitalistas e sua pecha de capachos de políticos profissionais não vivam sem ela. Mas para estes, melhor que o cidadão e a cidadã comuns tenham ojeriza a ela.

A receita de nosso mundinho neoliberal, então, se fecha: destrói-se emprego e o sentido do trabalho, destroem-se direitos sociais, jogam-se os cidadãos e as cidadãs num ciclo de total preocupação com a própria sobrevivência e a dos seus, produz-se nestes a culpa por sua desgraça e, o que é pior, mantêm-nos afastados da ação política pela falsa ideia de que se empreenderem (sem ter o que), um dia, talvez pela vontade de Deus, alcançarão seu lugarzinho à sombra de alguma palmeira sob as bênçãos do capital.

No fim de tudo, a soma dos enganados vai superando a dos desalentados. “Desempregado? Não. Microempresário: sim”.

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