O Boi cresceu ! Notas sobre o carnaval de Currais Novos
Natal, RN 24 de abr 2024

O Boi cresceu ! Notas sobre o carnaval de Currais Novos

1 de março de 2020
O Boi cresceu ! Notas sobre o carnaval de Currais Novos

Ajude o Portal Saiba Mais a continuar produzindo jornalismo independente! Apoie com qualquer valor e faça parte dessa iniciativa.

Quero Apoiar

Um dos poemas mais belos que li de Zila Mamede se chama “Bois dormindo”. Nele, o leitor é convidado a vislumbrar um “destino não de bois mas de meninos/ libertos que vadiassem chão de feno”, numa bela e utópica imagem de liberdade plenamente possível no reino dos sonhos. E se, no universo onírico, os bois conquistam mundos “ausentes de limites e porteiras”, a realidade pode ser ainda mais aglutinadora de vontades, tornando tangível o que antes ficava restrito aos domínios de Morfeu.

Numa livre analogia entre o boi e o povo, nasceu o Arrastão do Boi, em Currais Novos, interior do Rio Grande do Norte. Uma das manifestações populares típicas do lugar é o chamado “Boi do Trangola”, versão seridoense do Boi Bumbá. Desde 2013, o Arrastão tem colorido as ruas da cidade com o seu desejo de resgatar uma tradição e, ao mesmo tempo, questionar a realidade vigente com suas alegorias emblemáticas e com o povo assumindo seu lugar na avenida da vida: lugar de liberdade, resistência e sonhos.

Apesar do conservadorismo que quase sempre imperou no setor governamental em Currais Novos, iniciativas de participação popular aconteceram ao longo de sua história. Na década de 90, destacou-se o Arrastão da Gorete, bloco carnavalesco nascido na periferia da cidade e que ficou conhecido por seus bonecos gigantes marcados por um forte teor de crítica social e pela ressignificação constante de nossos costumes.

Depois de inúmeras tentativas infrutíferas de se manter essa tradição, um vácuo se estabeleceu no carnaval dos Currais. Entretanto, o Boi – que antes dormia – ruminava sonhos de um retorno apoteótico, e o povo – que tinha em seus olhos o brilho de quem se percebeu representado pelas cores do Arrastão – viu-se mais uma vez conduzido à cartografia genuína de seus sonhos de criança brincante, um tanto ingênua na fé quanto ao futuro, mas perspicaz para não deixar morrer aquilo que lhe é essencial.

Desse modo, resiste há oito anos o Carnaval cultural de Currais Novos, uma iniciativa autenticamente popular que revela a força do povo em fazer prevalecer sua identidade plural e digna de valor. Um projeto de tal magnitude, apesar de, nos últimos anos, ter sido mais abraçado pelo poder público, é, sem dúvida, uma prova de que a sociedade civil organizada é suficientemente capaz de romper com as malhas da mediocridade em que a cultura é geralmente emaranhada, o que não desobriga os órgãos governamentais de fazerem a sua parte: tratar a arte e a cultura como veículo de transformação do indivíduo e da sociedade, bem indispensável para a sobrevivência em um mundo cada vez mais materialista e esquecido daquilo que é humano, demasiadamente humano.

Enquanto não for criado o espaço de direito para a cultura em sua condição dialética, que atua negando os entornos da realidade para transformar o homem e seu mundo social, a necessidade de expressão artística e do belo será ainda mais persistente nas manifestações populares, reivindicando o reconhecimento devido. O Arrastão do Boi é uma prova desse desejo. E se os “bois” de Zila ainda dormem, pois “cansaram/ de ver que o chão em pasto não rebenta”, o Boi do Carnaval faz dos 365 dias do ano um constante despertar, lúdico e lírico, mas sobretudo, lúcido, na tarefa árdua e prazerosa de ver nossa cultura resistir e se espalhar.

Apoiar Saiba Mais

Pra quem deseja ajudar a fortalecer o debate público

QR Code

Ajude-nos a continuar produzindo jornalismo independente! Apoie com qualquer valor e faça parte dessa iniciativa.

Quero Apoiar

Este site utiliza cookies e solicita seus dados pessoais para melhorar sua experiência de navegação.