Rir pra não chorar
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25 de março de 2020
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O humor não é resignado, mas rebelde.

Sigmund Freud

Eu, você e muitos de nós estamos em quarentena devido à pandemia do novo coronavírus, o Covid-19. Essa informação já é velha e a cada dia de isolamento sucedem-se, vertiginosamente, dados, estatísticas, gráficos, dicas, correntes de orações, notícias e outros registros diversos acerca do cenário distópico em que estamos (sobre)vivendo.

Dentre esses registros diversos, como costuma ser na nossa contemporaneidade, estão também os memes, essa espécie de “charge virtual” que cumpre (ou tenta cumprir) uma tripla função: informar, criticar e fazer rir. Pode-se pensar que não é legal rir de um caso tão sério como essa doença, com todos os desdobramentos que advêm dela (mortes, desempregos, reclusão não voluntária etc.), mas eu me atrevo a dizer que eis aí o mote primal para desencadear um processo humorístico: nossa humanidade.

Em um artigo publicado em 1927 intitulado “O humor”, Freud abordou, de uma perspectiva psicanalítica, o que seria esse processo humorístico. Ele, que já havia publicado em 1905 “Os chistes e sua relação com o inconsciente”, aborda outro aspecto do trabalho psíquico implicado no humor: se antes ele se deteve sobretudo em um esquema estrutural desse trabalho (em síntese, o riso supõe dois processos, tal como nos sonhos: condensação – vários significados associados a um só significante – e deslocamento (quebras e rupturas de raciocínio), nesse segundo texto, Freud trata o humor como uma tentativa de vitória do “princípio de prazer” sobre uma realidade de sofrimento e para isso utiliza o exemplo de uma pequena piada: o de um criminoso levado à forca em uma segunda-feira e que comenta, simplesmente: “bom, a semana está começando otimamente”.

Assim, podemos pensar, com Freud, que o humor seria uma espécie de defesa psíquica, em que “o ego se recusa a ser afligido pelas provocações da realidade, a permitir que seja compelido a sofrer”. Diante, pois, de uma realidade opressora como a do Coronavírus (e a de um governo inepto e irresponsável para resolvê-la), como não rir com a infinidade de memes recebidos e partilhados cotidianamente em nossas redes sociais, nós, demasiadamente humanos e isolados socialmente?

Dentre esses memes, observamos habituais procedimentos humorísticos – que, por sua vez, indicam regularidades linguísticas e discursivas – por trás dessa “defesa psíquica”. Restrinjo-me a apenas nomear tais procedimentos, sem maiores comentários, contando com a habilidade interpretativa do leitor e seus conhecimentos prévios de mundo:

A DESSACRALIZAÇÃO DO SÉRIO: o que antes era considerado tipicamente como “sério” e “normal” aparece invertido no mundo “carnavalizado” do humor.

DESTITUIÇÃO DOS PODERES: também nesse “mundo carnavalizado” de inversão do sério e do normal, os poderes e hierarquias oficiais são destituídos, o “rei” se mostra então como um “bobo da corte” e quem supostamente mereceria respeito vira alvo de ridicularização.

PARÓDIAS: O recurso recorrente de humor (presente, por exemplo, em caricaturas) baseia-se em tomar um texto de origem (no caso, textos filosóficos clássicos) e transformá-lo em outro para criar um efeito de comicidade.

HIPÉRBOLES E EXAGEROS CÔMICOS: diante de um quadro tão “surreal” como o mundo atual do Coronavírus, nada como rir e fazer rir com situações “absurdas”.

AUTODERRISÃO: esse talvez seja o procedimento mais intimamente relacionado com a “defesa psíquica”, pelo qual o sujeito ri de si próprio e o próprio “eu” é tomado como objeto de riso.

Em suma, em dias tão sinistros e fúnebres, precisamos manter também nossa saúde mental. E talvez assim nos ajude, em alguma medida, o riso – com todo o respeito e reverência às tristes estatísticas que só aumentam. O riso, meio pelo qual não nos resignamos e sim resistimos e nos rebelamos contra um mundo (e governantes) ruins.

Em outras palavras: é preciso também rir pra não só chorar.

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