O milho e seus ritos
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O milho e seus ritos

27 de junho de 2020
O milho e seus ritos

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Impossível não sentir a falta do aglomerado, dos sabores, odores e suor dos arraiás do menino João. As festividades juninas marcam com brasa o nosso ano bem no umbigo, bem no meio, rachamos o ano em expectativa e lembranças no mês de junho.

Uma lástima para os que vivem de fazer, de todas as formas, esse momento tão colorido e belo acontecer. Um bilhão de reais deixou de circular esse ano no nordeste brasileiro devido à pandemia. Mais uma conta que pagamos por estarmos, necessariamente, em casa.

Apesar de levar o nome de João Batista, e estar envolvida por uma série de datas cristãs, o festejo junino em seu berço, é uma festa “pagã”.

Eduardo Galeano resgata, em sua “Terra do fogo”, a lenda do surgimento da semente do deus sol: “Os deuses fizeram de barro os primeiros maias-quichés. Duraram pouco, eram moles e sem força, desmoronaram antes de caminhar. Depois tentaram com madeira, andaram, mas eram secos: não tinham memória, nem sangue, substância ou rumo. Então os deuses fizeram de milho os pais e as mães. Com milho branco e amarelo, amassaram sua carne. As mulheres e homens viam tanto quanto os deuses e finalmente seus olhares se estenderam pelo mundo inteiro”.

Fica claro que o nosso querido Zea Mays (milho) era considerado a benção maior de sustentação das civilizações ameríndias.

Até 1961 se dizia que o milho tinha sua origem na América Central, mas arqueólogos encontraram vestígios mais antigos em escavações no Equador que datam do ano de 2900 a.C. Diogo Colombo (irmão do “descobridor” da América) relatou ter visto plantação de 30 km de milho pareado à abóbora como prevenção de pragas.

Haviam centenas de espécies crioulas que foram perdidas ao longo do tempo. Os tipos de milho mudavam de acordo com a região, mas sua cultura se estendia da América Central até o sul do continente, milho branco, milho amarelo, milho preto, milho azul (sim, milho azul!), estavam presentes por tudo que era parte.

Logo foi levado para Europa, onde se adaptou muito bem, tanto que logo passou a fazer parte da dieta dos viveres e animais de todo o continente europeu, mas a sua passagem mais marcante foi no norte da Itália, onde o milho ditou a forma de organização da sociedade rural com sua polenta, a imigração para o Brasil explica a cultura da polenta nas terras de cá.

A sincrética sabedoria popular do sertanejo diz que não se deve plantar milho se não tiver chovido até o dia de São José (19 de março), pois a terra não estará molhada o suficiente para as três colheitas de junho. A primeira colheita é no dia de Santo Antônio (13 de junho), a segunda e maior no dia de São João (24 de junho), e caso a temporada de chuvas seja boa, há ainda uma terceira colheita no dia de São Pedro (29 de junho).

Se a chuva ameaça aparecer, mas não vem na intensidade necessária, o sertanejo amarga “perder o milho na boneca”, ou seja, a espiga não chega a um estágio de desenvolvimento de sementes e resta apenas um sabugo estéril.

Por ser tão sagrado, o milho era ressecado ao sol e armazenado e reidratado para consumo posterior. Para isso evoco novamente Oswaldo Lamartine que detalha a “guarda” do milho nos sertões potiguares: “é acondicionado em sacas de couro para o consumo de médio prazo, já para o consumo de longo prazo se guardava em latas de querosene ou gasolina vedadas com gordura animal, cera de abelha ou mesmo solda. Os que tinham mais posses, possuíam silos rústicos, muitas vezes feitos com várias latas de querosene cuidadosamente cilindradas, à pau, e besuntadas em piche para que freasse a oxidação do metal. Se percebessem a presença do gorgulho, retiravam todas as sementes e levavam ao sol para desinfecção do mesmo”.

Os astecas diziam que o milho era a semente que aproximavam seu povo dos deuses, os nordestinos associam todo o seu processo adaptado ao calendário cristão. Sempre associado ao divino, o milho é rei que esbanja fartura.

Precisamos falar sobre a face corrosiva do milho

Nem tudo são flores no mundo do lucro onde o bicho homem habita. O ser humano colocou o milho em uma posição que é responsável por boa parte da agressão massiva e desenfreada da terra. Hoje a produção mundial de milho é de 1 bilhão de toneladas anuais. Me arriscando na matemática, se isso fosse distribuído, daria algo em torno de 140 kg de milho para cada habitante da terra por ano.

Só os EUA e sua Monsanto são responsáveis pela metade dessa produção. Disso se tira um terço para alimentação do ser humano e das criações e o resto vira plástico, xarope, óleos industriais e é usado até mesmo na produção de ligas metálicas.

Hoje quase não há mais sementes crioulas. Movimentos como Slow food e o MST resistem com suas cada vez mais escassas sementes nativas, cada uma com sua particularidade de sabor, cor, formato, alma e tamanho.

Gulas de junho

Passei uns dias matutando como iria finalizar o nosso encontro dessa semana. Então resolvi escutar um pouco as histórias e memórias afetivas, relacionadas ao milho, de alguns personagens da vida cotidiana.

A conclusão é simples e explícita. O trato do milho no meio doméstico tradicional é algo ancestral, um ritual alquímico onde cada integrante da família ou grupo tem seu papel muito bem delineado, principalmente as mulheres. São elas as responsáveis por passar de forma empírica o conhecimento de geração a geração da lida com o milho verde.

Como bem me disse Mayara, Marcos e tia Amanda sobre o feitio da canjica e pamonha transformando-se em um belíssimo e subjetivo rito de passagem, as crianças eram responsáveis por retirar a palha e os “cabelos” do milho. A cargo das moças-mulheres ficava o corte do milho na faca para em seguida ser processado em moinho ou liquidificador, quando usado para canjica, e ralado nas “pernas” quando for para a pamonha, além de mexer o “tacho”, ou seja, a parte “bruta” da preparação. Já as senhoras mais velhas, quase como velhas feiticeiras, observam, corrigem e ensinam aos ouvidos atentos cada ponto do ritual, além de reger as medidas e os ingredientes que acompanham o milho nessa aventura de força, calor e cor de sol.

Um trabalhão desses, obviamente, só valeria a pena se fosse desembocar em processamento de uma enorme quantidade de milho, onde o excedente sempre era compartilhado com os vizinhos, amigos e familiares.

Para finalizar, conto-lhes uma história de minha infância. Vovoinha, excelente doceira que é, fazia vez ou outra canjica para a gente, mas o que sempre me chamou atenção foi o seu método de fazer pamonha.

Não obtendo um formato correto da dobradura da palha do milho que envolve a pamonha (quando essa é posta na água, logo se desmancha e se perde dentro do caldeirão de água fervendo), digamos que vovoinha fazia umas pamonhas em formatos que iam do modernismo ao psicodélico, talvez por ser fã dos Beatles, e chegando o momento do cozimento, esse era fatídico.

Ela deixou de fazer pamonha por isso? Não! Ela simplesmente passava o ano juntando embalagem de macarrão para substituir a palha. Com o passar dos anos acho que ela percebeu que plástico cozido não fazia muito bem à saúde e decidiu costurar as palhas. Costuradas na máquina! Era uma bela cena vê-la operando sua “Elgin” branca furando incansavelmente as palhas de milho para fazer pamonha.

Essa lembrança visual é tão forte que quase parelha com a memória gustativa das inigualáveis comidas de milho lá de Mossoró, pois que ambas são afetivas. Como são gostosas as pamonhas de vovoinha, como sinto falta do São João da rua da Estrelinha.

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