A dor de um amor ancestral
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A dor de um amor ancestral

31 de julho de 2020
A dor de um amor ancestral

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Uma das maiores revoluções tecnológicas do século 21 são as novas técnicas de sequenciamento do DNA (também chamadas de Sequenciamento da Próxima Geração). Estas técnicas nos permitiram sequenciar muito mais genomas, mais rápido e, o mais importante, com muito menos dinheiro. Mas algumas surpresas estavam guardadas nas bilhões de letrinhas do nosso genoma. Uma delas veio de uma segunda revolução tecnológica, a extração de DNA de restos mortais de fósseis de hominídeos.

Em 2010, o grupo de Svante Pääbo publicou o primeiro genoma de um Neanderthal. Como já havia disponível o genoma de diversos seres humanos na época, eles puderam afirmar que haviam pequenos pedaços do genoma Neanderthal nos genomas de europeus e asiáticos (mais tarde foi mostrado que mesmo africanos os possuem, graças a antigas migrações da Europa/Ásia para lá). Até então, todos achavam que por serem espécies diferentes, H. sapiens e Neanderthais, eles haviam evoluído completamente independentemente. Neanderthais haviam migrado para a Europa e Ásia primeiro, há aproximadamente 400 mil anos, enquanto H. sapiens permaneceram na África. Somente há um pouco mais de 50 mil anos atrás nossos antepassados resolveram iniciar suas grandes migrações. Fósseis de H. sapiens e Neanderthais são encontrados na mesma faixa de tempo, entre 55 e 40 mil anos atrás, quando então os Neanderthais desaparecem misteriosamente. Ao olhar somente os fósseis, cientistas elaboraram a hipótese de que os Neanderthais, por serem intelectualmente inferiores, haviam sido subjugados por H. sapiens até serem extintos. Mas baseados nos tamanhos dos pedaços de genoma semelhante ao de Neanderthal que humanos modernos possuem, Svante e seus colaboradores foram capazes de afirmar que os mesmos não foram parar ali por conta do último ancestral comum, lá na África. Aqueles pedaços eram o produto de encontros amorosos muito mais recentes, após H. sapiens migrarem para a Europa e Ásia. Isso é, muitos de nós temos ancestrais Neanderthais!

Vimos por aqui que o descobrimento de nossos ancestrais Neanderthais causou uma rápida mudança na visão do meio científico e da mídia sobre a hipótese preconceituosa, de que eles eram seres humanos intelectualmente inferiores. Afinal de contas, a inteligência não é uma característica definida por um ou poucos genes que herdamos. Mas existem sim algumas características que são muito influenciadas por alelos de um único, ou poucos genes que herdamos de nossos pais. Será que o nosso passado amoroso com Neanderthais influencia alguma característica de humanos modernos?

É aí que entra o novo trabalho do grupo de Svante Pääbo. Svante e seus colegas identificaram que um gene muito importante para o funcionamento de certos neurônios, o SCN9A, possuía três substituições de aminoácidos entre H. sapiens e Neanderthais. Mutações que levam a substituições de aminoácidos são importantes pois podem levar a alterações na função da proteína. O SCN9A é um canal de sódio dependente de voltagem. Quando neurônios são ativados, lá na sinapse, acontece a abertura de canais na membrana que permitem a entrada de cátions, que estão em maior concentração do lado de fora. A membrana do neurônio quando em repouso, antes da ativação da sinapse, fica mais negativa do lado de dentro do que de fora. Assim, esta entrada de íons positivos na célula diminui esta polaridade da membrana em relação à diferença de cargas que estão do lado de fora e do lado de dentro, a membrana despolariza. Mas esta é uma despolarização local, na região da membrana aonde está a sinapse. Assim, a membrana do neurônio fica com regiões de sua membrana despolarizadas (as sinapses ativadas) e polarizadas (o resto da célula). Esta diferença de potencial entre diferentes partes da membrana acaba por gerar uma voltagem que abre canais como o SCN9A, que estão espalhados ao longo do neurônio. Ao abrir, SCN9A causa a despolarização local que se propaga ao longo do neurônio, despolarizando a célula toda e promovendo a condução do sinal. Assim, canais de sódio dependente de voltagem são essenciais para a propagação do sinal que aconteceu na sinapse ao longo de toda a membrana do neurônio, que pode ter metros. Só que a função deles não é simplesmente passar a mensagem à frente. A forma como a mensagem é passada é importante. Estes canais possuem uma dinâmica muito específica de tempo de abertura e fechamento, que são muito importantes para definir o quão forte e duradoura vai ser uma sensação ativada por um estímulo ambiental, por exemplo. Svante e seus companheiros então produziram artificialmente células que expressaram o SCN9A de H. sapiens ou Neanderthais para poder registrar a atividade elétrica da membrana. Assim, eles observaram que o canal SCN9A de Neanderthais é mais sensível, abre mais tempo com menos voltagem, do que o de H. sapiens.

SCN9A é expresso em neurônios responsáveis pela sensação de dor. Alguns humanos carregam mutações em seus genes SCN9A que causam insensibilidade à dor. Mas alguns outros humanos herdaram o gene SCN9A de Neanderthais, graças a encontros amorosos entre estes dois seres humanos na nossa linhagem ancestral. Será que o alelo de SCN9A Neanderthal confere diferenças na sensibilidade à dor dos seus portadores? Foi aí que Svante e seu grupo passaram um questionário com 19 perguntas relacionadas à percepção de dor para cidadãos britânicos, cujos genomas também foram sequenciados. Aqueles cidadãos portadores de todas as três mutações encontradas no SCN9A Neanderthal (em heterozigozidade, não havia homozigotos) relatam sentirem uma das formas de dor mais frequentemente do que o resto da população, ou mesmo que os portadores de uma das mutações ou combinações de duas mutações. Assim, é possível que aqueles encontros amorosos entre H. sapiens e Neanderthais influenciem a experiência de dor de parte da nossa população moderna.

Ao analisar genomas disponíveis de pessoas ao redor do planeta, esse grupo observou que populações do leste da Ásia e das Américas possuem este alelo de SCN9A Neanderthal em frequências consideráveis (até 23% em alguns lugares das Américas do Sul e Central). Esta é uma informação importante pois pode ter consequências regionais para a saúde pública. Mas é muito importante que evitemos a criação de estigmas na interpretação destes dados. A análise dos questionários continua sendo uma análise indireta da percepção de dor destas pessoas. Além disso, não existe nenhuma razão para darmos valor a uma possível maior sensibilidade à dor. A sensibilidade a dor pode ser boa ou ruim, dependendo do contexto social da pessoa. Por fim, não temos nenhuma razão para sustentar a hipótese de que haja alguma pressão seletiva sobre esse alelo. Isso é, herdar o alelo de SCN9A com as três mutações de Neanderthal não representa uma vantagem ou desvantagem adaptativa para um indivíduo ou população.

Lindo nessa história é que conseguimos ver que nossos ancestrais não eram unicamente bélicos. O cenário pintado antes dos dados de DNA era que os primeiros H. sapiens a migrarem para Europa e Ásia haviam massacrado os hominídeos que já estavam por lá. Mas agora sabemos que estes encontros podem também ter sido cercados por tolerância, inclusão e amor.

Para ler outros textos do neurocientista Eduardo Sequerra, acesse o site nossaciencia.com.br

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