O corpo de Maní
Natal, RN 28 de mar 2024

O corpo de Maní

25 de julho de 2020
O corpo de Maní

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Certa vez eu e alguns amigos nos perdemos nas estradas noturnas que rasgam os canaviais de Goianinha – São José do Mipibu - Canguaretama, tentando chegar a comunidade do Catuzinho para uma vivencia gustativa que remetia aos ritos culinários de nossos ancestrais indígenas.

A nossa sorte foi uma raposa que apareceu de repente e pareceu-nos certo seguir pelo caminho que ela nos apontava, e foi o que aconteceu, só assim conseguimos chegar a comunidade.

Até hoje me pergunto se o que vimos era a mesma raposa que vez por outra insiste em apontar a salvação para aqueles que se veem perdidos, como fizera com os gêmeos Romulo e Remo.

Depois de comer um incrível beiju morno enrolado em folha de bananeira acompanhado de peixe fresco frito dos rios da região, subimos uma pequena colina por traz da casa de nossa anfitriã, onde um grupo de pessoas dançava de forma mágica um toré muito bem ritmado. O chão de terra batida pulsava com os pés em uníssono.

É impossível ver uma colheita de macaxeira, e não lembrar do toré do catuzinho. Pega-se o caule com cuidado, pois esse mesmo será o vetor de novas colheitas futuras, a mandioca, tuberosa que é, merece todo a atenção possível. Em uma espécie de dança bem executada, tira-se da terra, para quando rachar o chão e observar a primeira vez a luz do sol, não se quebre.

A mandioca é tão importante na nossa vida que chega a me incomodar o fato de tentar me debruçar sobre ela, pois acho que é impossível de sintetizar algo tão rico em apenas uma semana de coluna, sendo assim, provavelmente esse tema se repetirá em algum momento.

A nossa querida Manihot esculenta, Rainha do Brasil como bem definiu mestre Cascudo, é nativa e tem sua origem provavelmente no Sudoeste da Amazônia, mas mesmo antes da chegada das naus portuguesas já estava disseminada em boa parte do continente americano.

Aqui em “nós”, ela é o remédio que a natureza nos deu para curar as feridas das chicotadas do destino e da fome que tanto judiaram e voltaram a judiar de nosso povo.

Diferente da farinha lavada, comum na região Norte, onde o tucupi e a goma levam consigo a maior parte do amido, aqui no Nordeste nós conservamos as propriedades da mandioca quase como um todo no nosso processo de torra da farinha. Claro que a tapioca é um fato social brasileiro.

Nos períodos de seca intensa a farinha pura ou pirão de agua acompanhado do pedaço de rapadura e/ou qualquer proteína disponível de forma escassa, foi o suporte da sobrevida para nossos antepassados sertanejos.

É incrível a quantidade de roupas e nomes (mais de trinta) que a macaxeira usa a depender da região do planeta. Sim, do planeta, tendo em vista que ela é responsável pela nutrição de ao menos meio bilhão de seres humanos.

Tempo desses, me foi relatado por Tania, uma cabo-verdiana/natalense, que em sua terra a entrecasca geralmente descartada era cortada em tiras e fritas em óleo quente para acompanhar as refeições, e de fato é uma delícia. Falando em África e a título de informação, a Nigéria hoje é a maior produtora mundial de nossa rainha.

Os paraenses cozinham a maniva, a folha da mandioca, por sete dias e sete noites para prepararem a maniçoba. Cozinha-se assim, insanamente, para que a sua toxicidade seja expelida pelo vapor contínuo. Muito curioso que o nosso pão da terra seja membro de um ser orgânico veementemente venenoso.

No Seridó, onde a herança da cozinha portuguesa é gritante, a farinha de mandioca é responsável pelas possibilidades de releitura dos doces e quitutes, como é o caso da espécie (doce escuro de gergelim, farinha, mel de rapadura e castanha de caju). É também recheio do doce seco, essa joia delicada feita por pouquíssimas doceiras da região.

Já aqui em Natal, Djalma Maranhão não brincava carnaval sem o Cauim de Sr Raimundo do Areal. Essa bebida no mínimo exótica que causou pânico em alguns forasteiros que por aqui andaram, ao saber que a fermentação doce e aveludada do sumo da mandioca era catalisada pela saliva das cunhãs (idosas da aldeia).

Para mim, adepto que sou, é um desafio elencar alguma preparação preferida, mas confesso que nos últimos dias tenho namorado com a nossa farofa d’agua de forma mais caliente. Marcos me ensinou esses dias que para meio quilo de farinha branca se adiciona 200 ml de agua quente, 100 ml de manteiga da terra e sal, junta-se cebolas roxas “suadas” e anteriormente reservadas e coentro picado. Rápida, forte e saborosa.

Para concluir, retiro da cartola de Câmara Cascudo a lenda da origem da mandioca, pois não creio ter algo mais belo em relação a ela e que tenha sido sintetizado em palavras:

Numa tribo indígena a filha do Tuxaua deu à luz a uma menina branca como leite. O Chefe quis matar a filha, mas um moço branco lhe apareceu em sonho e lhe disse que a mãe da criança não era culpada.

A criança, antes de completar um ano, morreu sem ter adoecido. O Tuxaua mandou enterrá-la na própria aldeia, e a mãe todos os dias lhe regava a sepultura, sobre a qual nascera uma planta que deu flores e frutos.

Certa vez a terra abriu-se ao pé da planta e apareceram as raízes. Os índios as colheram e viram que eram brancas como o corpo de Mani, e deram o nome de Maníoca (casa de Mani) ou corpo de Mani. E à planta deram o nome de maniva (Mandioca)”.

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