No carnaval não tem revolução
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No carnaval não tem revolução

10 de agosto de 2020
No carnaval não tem revolução

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Atribui-se a Walter Benjamin a frase que diz: “toda revolução é um ato de embriaguez”.

Como eu já passei dos 44 e não estou mais no auge da minha fase hormonal para ficar repetindo o que eu leio pelas redes sociais sem antes atestar a veracidade da autoria em algum daqueles velhos objetos de papel que nossos ancestrais chamavam de “livro”, mantenho o “atribui-se” até que um douto sabedor dos caminhos do bom e velho ensaísta judeu de Berlim venha me corrigir, e emendo: “toda revolução é um ato de embriaguez, mas nem toda embriaguez é um ato revolucionário”.

Aliás, na maioria das vezes, a embriaguez é uma ferramenta profundamente conservadora. Ao menos se os conservadores, usando do bom senso, aprendessem as lições deixadas por Eurípedes ao tratar, em sua tragédia (As Bacantes), da treta envolvendo o deus Dionísio e Penteu, rei de Tebas.

Conta o antigo tragiógrafo que o deus do vinho e do êxtase sagrado, emputecido pelo fato de não ter sido reconhecido como um deus por sua família mortal (ele era filho de Zeus com Sêmele, princesa de Tebas) resolve se vingar da casa real de seus parentes após o rei Penteu ter proibido seus cultos na cidade (especulo que sob o argumento que trariam desordem e poriam em risco a “tradicional família tebana”).

Para encurtar a história, Dionísio encanta as mulheres da cidade e as leva até uma colina em um frenesi orgiástico. Uma imensa rave com sexo livre, carne crua e alcaloides naturais (ou você pensa que o vinho de Dionísio levava só uva?). No final (atenção para Spoiler!) as mulheres da cidade, tomadas pela embriaguez dionisíaca, despedaçam o corpo do rei Penteu e lhe arrancam a cabeça.

Dá até para imaginar uma montagem da tragédia em que o cortejo do deus louco entra na cidade cantando “Voltei pra Tebas, foi a saudade que me trouxe pelo braço...”, com a cabeça de Penteu espetada no porta estandarte enquanto a folia se espalha pelo teatro contagiando a plateia e tomando conta das ruas da cidade.

Se a aristocracia russa tivesse prestado um pouco mais de atenção a sabedoria dos antigos talvez tivesse sido mais complacente com as demandas das mulheres que, durante a greve geral de Fevereiro de 1917, exigiam a paz, o retorno dos soldados e o fim imediato da desastrosa guerra contra a Alemanha. Mas a imperatriz Alexandra, esposa do Czar Nicolau (chamada pejorativamente pelo povo nas ruas de “A alemã” em função de sua origem germânica), preferiu dar uma de Maria Antonieta e exclamar, diante da turba que começava a ferver pelas ruas “Essa gente está pedindo chibata!”.

O radicalismo conservador, que se manifesta em uma negativa intransigente de qualquer arremedo de reforma ou qualquer possibilidade de mudança, mesmo que mínima, na estrutura hierárquica de suas sociedades, é um dos mais significativos combustíveis das revoltas e das revoluções.

Não há como explicar 1917 sem colocar na equação a rigidez conservadora. A ideia de que todo ato revolucionário, com seus excessos e sua embriaguez, é responsabilidade de românticos tresloucados ou de utopistas totalitários é uma redução ideológica que mais serve para encobrir e desviar o foco do fenômeno revolucionário do que torná-lo mais transparente ao entendimento.

A rigidez da hierarquia das forças armadas russas, que distribuía patentes militares conforme a classe social e não conforme o mérito, é um elemento central para entender a equação que fez implodir o regime czarista. Outubro só foi possível devido a incapacidade dos generais do exército russo (na ampla maioria aristocratas) controlarem suas próprias tropas.

Com aproximadamente 14 milhões de homens, o exército do Czar tinha 85% de seus membros formado por camponeses. Dentro da rígida hierarquia militar do regime czarista, se reproduzia, de modo bastante engessado, a hierarquia social que cindia a Rússia em castas. Os bolcheviques perceberam melhor do que ninguém essa conexão entre o exército e a revolução e extraíram as suas exigências revolucionárias a partir da demanda dos soldados camponeses: “paz, pão e liberdade”.

Enxergando no seu general o seu inimigo de classe, o soldado raso do front russo começou a matar seus próprios oficiais. As deserções em massa fizeram os soldados, cansados de morrer em nome de uma guerra que não lhes dizia respeito, começarem a refluir do campo de batalha aos milhões.

Essas deserções em massa produziram uma verdadeira jaqcquerie, com pogrons, execução de nobres, banditismo, estupros e ataques a mão armada. No caminho, tal qual em um festival de selvageria dionisíaca, os soldados do Czar disseminavam o caos, matando animais, saqueando casas e palácios de ricos proprietários de terra, queimando vilas, multiplicando em toda parte pilhagens e linchamentos. Pelo seu caminho espalhavam o pânico que o “sorriso diabólico dos homens livres” costuma a causar nos que habitam o topo da cadeia alimentar das sociedades humanas.

Eles destruíam museus e queimavam bibliotecas com a mesma falta de cerimônia que saqueavam adegas, fazendo emergir uma espécie de “tábula rasa dos milênios” no fogo da sua própria embriaguez.

A famosa tomada do palácio de inverno, romantizada por Sergei Einsenstein em seu filme Outubro, de 1928, foi uma cena controlada, preparada pela cúpula bolchevique após as obras de maior valor terem sido transferidas para o subsolo do Kremlin. O saque da prataria do Czar, dos espelhos e dos móveis dos palácios da antiga ordem, andava quase sempre, junto ao saque das adegas privadas onde o povo, acostumado a beber a Vodka da feira, podia, pela primeira vez, tomar o melhor vinho das safras europeias.

O que as aristocracias conservadoras, vítimas iniciais das revoluções modernas, não foram capazes de entender, como Penteu da tragédia clássica, a negar um lugar na sua cidade para o culto da louca violência divina de Dionísio, é que as reformas, mesmo quando pontuais e inofensivas, tem um conteúdo terapêutico, que permite aliviar a pressão do ressentimento dos oprimidos, diante dos privilégios dos opressores.

Em certas circunstâncias históricas a “pedagogia da chibata” é a forma mais rápida de se incrementar a rebelião.

Nesse sentido, a aristocracia escravocrata que comanda o Brasil a tantos anos é bastante hábil. Entre reformas cosméticas aqui e ali, nossos senhores arreiam de tempos em tempos o açoite nas costas do povo, sem muito pudor, porque, quando a pressão começa a ficar muito forte, as ruas do Brasil se abrem para o cortejo de Dionísio passar.

Entre o sábado de Carnaval e quarta feira de cinzas o Brasil se embriaga. No grande teatro da loucura de Momo as hierarquias são simbolicamente suspensas em uma licença poética para que uma simulação de caos revolucionário tome conta das ruas e agite as massas em delírio. Atrás do trio elétrico, dentro ou fora da corda, nos camarotes, na arquibancada, nas praias, nos sertões e nas avenidas, o país sofre sua metamorfose sazonal e um delírio fantasioso de desordem suspende o cotidiano infernal ao qual a maioria da população está submetida.

Um dos mistérios sociológicos mais fascinantes sobre o Brasil é o de se entender como uma sociedade com uma desigualdade tão escandalosa, em que uma maioria tão avassaladora da população é tratada com uma brutalidade e um desprezo que fariam corar de embaraço o mais arrogante aristocrata do antigo regime, nunca tenha empalado um presidente, linchado um ministro da suprema corte ou cozinhado vivo um dono de banco.

O fato é que revoltas, tivemos muitas, mas revoluções, nenhuma.

No fim das contas, no Brasil, todo ano Dionísio entra em Tebas, e, sabe-se lá se não é por isso que nesses litorais, ao contrário do que ocorreu na velha e reacionária Rússia do Czar Nicolau II, a cabeça de Penteu nunca tenha ido parar num poste.

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