O diabo do mercado
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O diabo do mercado

17 de agosto de 2020
O diabo do mercado

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Poucas coisas são mais embaraçosas na contemporaneidade, para um neoliberal estilo Paulo Guedes, do que a China. Explicar como é possível que o país que parece administrar de modo mais eficiente o capitalismo do século XXI seja governado por um partido leninista é uma saia justa para aqueles que acreditam que existe alguma conexão necessária entre capitalismo e democracia. As alternativas a esse problema geralmente causam mais perplexidade porque, ou o neoliberal guediano vai ter de admitir que a China não é capitalista e como consequência que um país que rejeita os pressupostos da economia de mercado é hoje o motor da economia global ou pior, que tendo a China aderido aos “imperativos naturais e necessários” de uma economia de mercado, seriam os burocratas do partido comunista de Pequim aqueles que põe o capitalismo pra rodar com mais eficiência do que os tecnocratas de Wall Street.

Essas perplexidades muitas vezes são produto não apenas de uma incapacidade eurocêntrica de compreender as especificidades do caso chinês, mas também, a gente pode dizer sem medo, uma cegueira ideológica em relação a experiência comunista.

Imaginar a experiência comunista como um monólito intransponível, ou como um todo imóvel do começo ao fim, faz parte da estratégia ideológica da militância de direita que tenta estabelecer uma proibição de pensamento, colando um imenso rótulo de banalidades retóricas que envolvem fome, terror, miséria e opressão de modo a reduzir a vida em regimes comunistas a uma espécie de fantasmagórica temporada no inferno.

É mais ou menos como a história do homem do saco que nossos pais contavam pra que a gente não ficasse até tarde na rua, nem saísse por aí conversando com estranhos. Uma estratégia de apavoramento epistêmico que assusta e interdita qualquer possibilidade de análise mais detalhada sobre aquilo que se quer esconder.

Sim, é verdade. Em muitos momentos fome, miséria, terror e opressão compuseram a experiência comunista, mas, infelizmente, esses quatro cavaleiros do apocalipse não são exclusividade do mundo que se constituiu entre 1917 e 1991. Fome, miséria, terror e opressão andam de mãos dadas com a humanidade há muitos séculos, independente dos modelos políticos e econômicos do momento e, para a infelicidade geral dos utopistas (de esquerda, de direita, de banda ou na transversal) dão sinais que vão continuar por aqui ainda por muito, muito tempo.

O fato é que quando se estuda com atenção a experiência econômica do mundo comunista, sem a venda ideológica das proibições de pensamento, muitas nuances e variações saltam aos olhos.

Na primavera de 1921, por exemplo, após a revolta de Kronstadt, Lênin compreendeu a necessidade imperiosa de se abolir o comunismo de guerra, focado no controle radical da economia por parte do Estado e numa feroz centralização política, e passou a defender a tese de que seria necessário permitir reformas liberalizantes que possibilitassem o reflorescimento de um comércio privado e o surgimento de uma nova classe de pequenos proprietários rurais abastecida por uma pequena burguesia urbana.

Lênin havia recuado de suas ideias do período de 1919 e 1920, que pareciam lhe indicar que, vencida a guerra civil, a revolução poderia eliminar o mercado e saltar direto para um estado de industrialização comunista, sem nenhuma mediação de transição ou concessão aos pressupostos de uma economia capitalista que permitisse acumular o capital necessário para reconstruir o país e forçar sua industrialização.

Reconhecido esse erro de avaliação, Lênin passou a elaborar a NPE (Nova Política Econômica) e começou a defender que os camponeses deveriam ter permissão de obter ganhos privados com a sua produção de comodites alimentícias na medida em que passassem a comprar os produtos industrializados produzidos nas zonas urbanas.

O fato é que, se você, que se fez o curso de ciência política através dos vídeos do professor Olavo de Carvalho e das fakenews do MBL, chegasse em Moscou em 1924, por exemplo, provavelmente se assustaria com os anúncios publicitários de tabernas e confeitarias que vendiam produtos importados e não acreditaria que estivesse mesmo vivendo no inferno de coletivismo comunista das fantasias conservadoras, ao ler anúncios nos jornais oferecendo serviços de médicos, advogados, dentistas e até operadores de bolsa de valores, exemplares típicos da pequena burguesia do paraíso capitalista que você foi adestrado a amar.

O fato é que a introdução dessas mudanças econômicas fez rapidamente eclodir um grupo de oposição de esquerda no interior do partido bolchevique que enxergava a guinada de Lênin em direção ao mercado, como uma espécie de Termidor da revolução de 1917. Observando o acontecimento revolucionário com os óculos do que havia ocorrido na França em 1789, esse grupo de oposição acusava Lênin de ter implantado um modelo de concessões capitalistas e que ele deveria, em função disso, ter esquecido os princípios revolucionários. O conflito entre oposição e direção se acirrou no interior do partido bolchevique, na medida em que os dois grupos se acusavam mutuamente de traição e começavam a fazer alusões aos “usos benéficos da guilhotina”, sempre seguindo o modelinho histórico da revolução francesa, que parecia ser para os comunistas russos, um desses infográficos de internet contendo o passo à passo de toda revolução possível.

O problema é que em 1927 Lênin já estava morto e o camarada Stálin, que já estava no comando do partido, diante da crise de abastecimento que tomou conta do país em função do baixo preço dos cereais no mercado, teve de tomar uma opção. Ou insistia na NPE e nas reformas liberalizantes e cobria com o dinheiro do Estado o prejuízo dos camponeses com a baixa do preço do cereal, adiando assim o projeto de industrialização ou tacava fogo na NPE e botava pra torar em cima dos camponeses, confiscando a produção agrícola à força para evitar o retorno da fome nas áreas urbanas.

No fim, o camarada Stálin, que nunca foi conhecido pela sua sensibilidade e humanismo, optou pelo segundo caminho e o incipiente mercado soviético foi para o saco. O que se seguiu foi o retorno do comunismo de guerra, junto com a coletivização forçada do campo e os planos quinquenais que catapultaram a Rússia em direção a uma industrialização sem precedentes na história moderna, a um custo humano monstruoso.

Na verdade, parece que os chineses entenderam melhor Lênin do que os próprios Russos e, obviamente, em função de condições históricas bem diferentes daquelas que circundaram a economia soviética fizeram sua transição para o mundo do mercado sem rupturas violentas.

O pulo do gato (ou do tigre pra ficar mais épico) de Deng Xiaoping foi ter percebido que a China não deveria se abrir para uma economia de mercado através de uma “terapia do choque” do tipo neo liberal, como foi o caso da Rússia. A transição da economia chinesa para o capitalismo se deu “pelas margens”. Inicialmente pelas margens geográficas das zonas francas, depois nas margens de produção (pequenos artesãos e prestadores de serviços) estimulando, após a morte de Mao, que uma pequena classe de proprietários rurais acumulasse capital e usasse esse capital acumulado para fazer uma transição econômica em direção a uma economia industrializada de mercado, e por fim com a criação das empresas estatais que não foram direta e selvagemente privatizadas (como na Rússia após o colapso da URSS) mas que começaram a poder vender seu excedente de produção no mercado livre, criando assim uma forte competitividade entre empresas públicas e jogando no vaso sanitário da ideologia o mito neoliberal de que há algum tipo de incompatibilidade necessária entre Estado forte e mercado competitivo. Tudo isso, obviamente, turbinado por um controle estatal rígido do sistema financeiro.

O partido comunista chinês acabou, deste modo, se pondo a serviço de uma nova classe de capitalistas chineses e arrogou para si a tarefa de manter a imensa força de trabalho sob controle a fim de garantir a manutenção da engrenagem econômica funcionando, sem que para isso precisasse seguir o modelo de bem estar social dos europeus, considerado pelos leninistas chineses como “muito preguiçoso”.

A China, com seu flerte com o diabo do mercado, sem abrir mão do rígido controle político partidário e a centralização rigorosa do comando do país é hoje o grande e embaraçoso elemento complicador para as caixinhas doutrinárias que o iluminismo europeu vendeu para o mundo. Liberais, socialistas, anarquistas, capitalistas e comunistas da velha guarda. O vexame é grande, quando a desconcertante irregularidade do mundo se recusa a encaixar no modelinho teórico que se usa para justificar nossas escolhas políticas.

Em 1917, Lênin já havia percebido, com a agudez de sua análise de conjuntura, que no fundo, no fundo, não há uma “lógica objetiva” na história, nem mesmo uma “sequência necessária do desenvolvimento das forças produtivas”.

A tessitura complexa e multifacetada das situações concretas e a influência das decisões pessoais nos rumos da política real sempre aparece para perturbar o “sereno fluxo das coisas”.

Não há uma régua efetiva pela qual a história possa ser medida. Na verdade, no campo da história, a única regra são as exceções.

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