Na semana passada tive de recorrer ao Uber por três vezes, em dias e itinerários diferentes, Em comum entre as três corridas, que todos os motoristas eram homens entre 35/45 anos e que mantinham os protocolos de segurança (máscara, álcool em gel no carro e eu no banco de trás). Ah, e também em comum entre os três que no papo surgiu o assunto Ivermectina.
Costumo fazer perguntas vagas e deixar que os motoristas respondam o que pensam da vida, do mundo. Só ouço com atenção contida e sem expressões de concordância ou desaprovação. A não ser que me admita um crime ou uma grosseria extrema, só balanço a cabeça de modo ambíguo. Além de meio barato de me locomover de um ponto a outro, é um experimento de sociologia e comportamento humano, penso eu.
Para todos os três fiz a pergunta vaga "E o Covid, hein?" e deixei que respondessem. Um tentou falar que era até castigo divino e passou pano para as autoridades. Outro, que era vírus chinês e envolvia os EUA e etc e tal. O terceiro sentou o sarrafo em Bolsonaro. Mas, sobre Natal (e por extensão sobre o Estado) atribuíram a baixa de casos e óbitos e os leitos vagos a uma causa: a Ivermectina.
Como se sabe (e fiz questão de ler mais), trata-se de "um fármaco usado no tratamento de vários tipos de infestações por parasitas. Entre elas estão a infestação por piolhos, sarna, oncocercose, estrongiloidíase, tricuríase, ascaridíase e filaríase linfática". Ou seja, um remédio para piolhos teria sido o responsável pela queda de casos e mortes na capital potiguar. Por obra e graça do prefeito Álvaro Dias, a quem, em texto irônico nas redes, propus que vencesse o Nobel de Medicina pela descoberta.
Repetindo: Os três motoristas de Uber disseram com todas as letras que a "Ivermectina do prefeito Álvaro" reduziu os casos e evitou o pior em Natal. Dois deles confessaram ter recorrido à medicação. Um deles disse "E depois que tomei não peguei Covid".
Minha zombaria sobre o Nobel de Álvaro deve ter rendido justa zombaria por parte da assessoria dele. Nada a rir da Ivermectina. Foi um gol de placa político, uma jogada de mestre que garantiu ao prefeito a liderança nas pesquisas e a possível ida ao segundo turno com folga e possível reeleição em um pleito esquisito com 14 candidatos (13 agora que o do velho Novo desistiu).
Narrativa. É como chama.
Não obstante erros e acertos, contradições, ações desastradas, um secretário de saúde demissionário, Álvaro encontrou a narrativa que precisa. Um remédio milagroso em um momento em que todos precisavam de um. Se as ações do Governo do Estado de confinamento e paralisação das atividades dessem certo, os casos e mortes diminuíram no estado, consequentemente em Natal. Mas, o Governo Fátima não tinha uma narrativa (ações discretas e eficazes são necessárias, mas, não narrativas). Portanto, havia uma possibilidade de narrativa solta no ar e o prefeito de Natal e apanhou, como quem captura uma borboleta rara, respaldado por parte da classe médica conservadora igualmente louca por uma narrativa.
A narrativa de Bolsonaro e Trump com a cloroquina não funcionou porque no macro os números da doença impactaram a todos. No micro, como no nosso pouco densamente povoado RN e em Natal em especial, cidade sem caos urbano absoluto como São Paulo e Recife, era possível que uma narrativa de remédio mágico funcionasse.
E funcionou.
Ah, mas se a Ivermectina fosse realmente milagrosa bastaria Álvaro entupir dela professores e alunos e retomar com a rede pública municipal. Álvaro não é bobo nem doido. A narrativa já foi construída - vide os motoristas de uber do primeiro parágrafo - e bastaria seu governo administrar setores específicos.
Em tempo: Para um dos motoristas, no final da corrida, não resisti e disse que eu não havia tomado Ivermectina, mas, apenas lambedor e chá de alho com gengibre, e que, como ele também não havia contraído Covid. Na esperança que ele fizesse a ilação de argumentos e causas. Ele me deu o troco e respondeu com bastante seriedade: "Lambedor e chá é bom. Mas se eu fosse o senhor ia em um posto de saúde e tomava Ivermectina para garantir".