A Revolução no Simulacro
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A Revolução no Simulacro

14 de dezembro de 2020
A Revolução no Simulacro

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Quando Maio de 68 estourou nas ruas de Paris, a França não vivia uma miséria profunda ou uma repressão política tão brutal a ponto de justificar uma explosão de violência contra a ordem instituída. A situação na Europa ocidental era bem diferente daquela que acometia a América Latina, já começando a se fechar em uma muralha de aço de ditaduras militares. O contexto francês também não parecia em nada com o ambiente da Tcheco-Eslováquia de Jan Palach (o estudante que se auto imolou com fogo em protesto contra a invasão soviética que interrompeu a “primavera de Praga”) ou na Polonia de Adam Michnik (dissidente que atuou fortemente na resistência ao regime comunista polonês, especialmente após os expurgos antissemitas da década de 60).

Em sua maioria, os jovens das barricadas do Quartier Latin, em Paris, não tinham passado pela experiência da guerra ou pelo menos, não tinham uma memória tão intensa daqueles anos sombrios para ter algum tipo de respeito reverencial por figuras como Charles De Gaulle ou Winston Churchill. Talvez por isso, o barulho da rebelião de Maio de 68 ecoou muito mais no espaço subjetivo das afetividades políticas, no terreno poroso da imaginação emancipatória e no campo minado da disputa simbólica, do que no mundo brutal da real politik.

O próprio PCF (Partido Comunista Francês) e a CGT (principal central sindical de trabalhadores franceses à época) tiraram o pé do acelerador dos protestos quando sentiram que a coisa poderia sair do controle. Nem os velhos comunistas franceses, nem os representantes sindicais do movimento operário gaulês, pareciam muito interessados nesse papo de revolução que os jovens estudantes da Sorbonne replicavam, quer nas salas de aula ocupadas, quer nas barricadas estudantis em meio a ruas cercadas pela fumaça dos coquetéis molotov e do gás lacrimogênio.

Isso não era de espantar ninguém, afinal, a esquerda marxista clássica, vinculada ainda às diretrizes de Moscou, não iria contrariar o velho líder soviético, Leonid Brejnev, que tinha muito o que se preocupar com as mobilizações de estudantes em seu próprio quintal, na Europa do Leste e também não iria mover um centímetro de sua influência política para desestabilizar o governo De Gaulle, que, a despeito da longa ocupação militar norte americana na banda ocidental da Europa, mantinha um diálogo diplomático bastante produtivo com a União Soviética insistindo em defender uma posição de autonomia nacional da França em relação aos interesses geopolíticos dos norte americanos.

Muito em função disso, o que Maio de 68 acabou demostrando, é que havia uma fissura na sala de jantar.

O mundo parecia montado sobre um abismo geracional, um barril de pólvora prestes a explodir, que separava gente como Daniel Cohn-Bendit, Tariq-Ali, Rudi Dutschke e Franco Piperno da geração de seus pais; muitos deles velhos partisans que combateram o nazi-fascismo com um fuzil nas mãos e a canção Bella Ciao nos lábios.

Os jovens das barricadas do Quartier Latin, dos protestos de Chicago, da luta contra a guerra do Vietnã, da passeata dos cem mil ou da ocupação da Universidade Autônoma do México, acabaram, muito em função disso, se chocando contra instituições à época muito sólidas, construídas no esteio do pós guerra, que abortaram qualquer expectativa de mudanças radicais de curto prazo em seus próprios países.

Esse rebote conservador gerou três saídas que serviriam de válvula de escape para o gosto amargo de fracasso daquela geração: 1. A ação armada direta; 2. A fuga místico-poética para o campo em uma reedição das comunidades alternativas epicuristas; 3. O desbunde dos 70, com a entrada de cabeça na estrada dos excessos do sexo e das drogas, que levava tanto ao palácio sagrado da expansão da consciência, quanto ao abismo das experiências existenciais autodestrutivas.

A minha geração nasceu bem no meio da ressaca de 68. Somos filhos do tempo em que “a barra pesou” sobre a cabeça da geração de nossos pais. Por isso, acho que crescemos com essa nítida sensação de que o tempo heroico das revoluções havia acabado, e tudo que tínhamos era um simulacro de revolução, erguido em templos imaginários que liquidificavam a acústica do rock, com as distopias dos quadrinhos underground, as imagens poéticas do cinema alternativo e os retalhos de utopias literárias que mais pareciam uma eterna nostalgia do que não havíamos vivido.

Até hoje é difícil pra gente que nasceu nos anos 70 e 80, entender se a trincheira cultural para a qual fomos lançados no mundo dos simulacros, sempre em busca de tendências estéticas e esquemas comportamentais novos que fugissem da mão ardilosa do mercado, era uma opção de uma geração que não tinha mais o porquê de ter um fuzil nas mãos, ou uma imposição de um sistema que havia matado a utopia ao transformá-la em uma marca de refrigerante.

Hippies, punks, darks, head bangers, skin heads, rastafaris, clubbers, grunges, forrozeiros. O fim do milênio parecia um festival sem fim de estilos musicais. Um desfile perpétuo de moda alternativa definido traços de pensamento e modos de vida que evoluíam em uma revolução permanente que transitava pelo mundo privado, a despeito de deixar o espaço público na mão de quem sempre esteve no controle do jogo. Afinal, nossos heróis haviam morrido de overdose, e nossos inimigos continuavam insistentemente no poder.

Mas nem tudo estava perdido. Esse mergulho no campo da linguagem, essa guinada contra cultural para o universo das formas simbólicas, justiça seja feita, trouxe ganhos muito substanciais no campo daquilo que a academia apelidou de “usinas de subjetividades pós modernas”. A aceitação da diversidade sexual, a ideia da tolerância e da porosidade religiosa, a percepção de uma isonomia de gênero, a noção da busca por uma harmonia ambiental, a consciência antirracista, a explosão de uma miríade de identidades plurais na composição de um mosaico pós-moderno de novos afetos, a transformação dos costumes e das relações familiares; e o desmantelamento da sociedade disciplinar calcada no tripé: escola militarizada, fábrica hierarquizada e família patriarcal.

Para nossa geração, estava muito claro de onde vinha tudo isso. Não é a toa que o presidente francês Nikolas Sarkosy, expoente da nova direita europeia do começo do século XXI, declarou abertamente em 2007, após sua primeira eleição, que seria preciso “liquidar a herança de 1968”.

É bastante sintomático que nos últimos anos, ao contrário do que ocorria no meu tempo de aluno da Escola Técnica Federal, aqui mesmo no Rio Grande do Norte, na última década do século passado, a criatura que posava de “antissistema” usando um moicano, roupa rasgada e jaqueta cheia de bottons de bandas de hard core, tenha sido substituída por um sujeito com roupa paramilitar de camuflagem que faz pose de arminha, enquanto defende valores anti liberais e conservadores.

O mercado capturou com um sucesso avassalador o espírito de 68 e o transformou em propaganda ideológica a seu favor, esvaziando seu conteúdo disruptivo. A própria CIA percebeu isso enquanto monitorava os professores universitários franceses nos anos 70 e 80. Num relatório de 1985, preparado pelo escritório europeu de análises do Diretório de Inteligência da CIA, intitulado France: defection of the leftist intellectuals, as aulas e as publicações de gente como Michel Foucalt, Jacques Derrida, Roland Barthes e Lacan, são escrutinadas, mostrando para o governo norte americano que havia já um gradual afastamento da esquerda europeia do comunismo soviético e do marxismo. Esses novos intelectuais de esquerda que emergiram de Maio de 68, rompiam com a geração anterior de pensadores que viveram a resistência antifascista durante a guerra, fazendo com que os agentes da CIA suspirassem aliviados no seu relatório com a constatação de que: “não existem mais Sartres nem Guides na França”.

O que o tal relatório deixa claro é que existia naquela época um “novo clima de opinião intelectual na França, com um espírito anti marxista e anti soviético que dificulta a mobilização de sentimentos anti americanos”.

A vitória dos pensadores “pós-modernos” no ambiente intelectual pós 68, fez com que a URSS se tornasse o alvo preferencial das críticas da esquerda e não mais os EUA. Embalados pelo recuo da esquerda comunista durante a rebelião de Maio de 68 e pela influencia da publicação na França, em 1975, do romance de Alexander Solsenitsin, Arquipelago Gulag, a nova esquerda ocidental assumia o argumento básico da direita do pós guerra. Se o que existia era uma dicotomia “democracia liberal” contra “totalitarismo” e não mais “capitalismo” contra “comunismo”, toda crítica à democracia liberal só poderia ser classificada como “totalitária”. Como o comunismo não tem compromisso com a “democracia liberal”, nem com o liberalismo que a alimenta, então a conclusão que se chega a partir desse raciocínio é: “todo comunismo é totalitário”.

Afinal, se toda forma de poder é uma forma de morrer por nada, tudo que Fidel e Pinochet fariam era “tirar um sarro” da cara de uma juventude que queria uma revolução tão radical e imediata, mas tão radical e imediata, que precisaria abolir qualquer estratégia pragmática de conquista e manutenção desse mesmo poder, porque, afinal, qualquer coisa que rimasse com “poder” e que não fosse “paz, amor e capital” era totalitarismo.

Essa articulação que emergiu do simulacro de revolução que foi Maio de 68, acabou marcando uma “capitulação” da esquerda ocidental ao modelo norte americano que se tornou hegemônico com a queda da URSS e que nos oferece a maravilhosa liberdade, de quatro em quatro anos, de escolher entre o “liberalismo azul” e o “liberalismo vermelho”.

Uma escolha que torna praticamente impossível qualquer proposta de transformação social mais radical. Nada melhor para quem quer mudar tudo, pra manter tudo do mesmo jeito que sempre foi.

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