Tudo fica bem no ano que vem!
Natal, RN 25 de abr 2024

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28 de dezembro de 2020
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Era um dia de Natal de um ano difícil, e, apesar do prenúncio de chuva, tudo se fez sol, iluminando cada instante daquele esperado reencontro, como mágica que transcende corpos, tempo e espírito, até a volta pra casa, às 18h53, 7 minutos antes de encerrarem as atividades do metrô. Flutuando distraída e plena, demorei bem mais de 10 segundos para cruzar a catraca, depois de depositar o cartão de acesso. Por culpa do amor, precisei recorrer ao funcionário daquela estação, que percebeu minha desorientação e liberou a minha entrada.

Entrei no vagão rindo do vento, titubeando entre sentar ou me manter de pé, já que eram poucos os lugares vagos que ainda permitiam o distanciamento social recomendado. Mas antes mesmo que eu pudesse me sentar de fato, uma mulher atravessou a porta na estação seguinte, com os olhos cheios d'água, invadindo o vagão. Parecia que levava a casa nas costas. Uma vida inteira em uma mala e duas sacolas cheias de um peso difícil demais de carregar sozinha: o peso da dor.

Tão pesado que uma das sacolas se rompeu, e tive que ajudá-la a catar os pedaços da vida dela, derramados no chão do vagão. Quase deixa cair uma ou outra alegria ali, pelo vão que fica entre a porta e a plataforma, onde dizem ter eletricidade. Ignorando as medidas de saúde e segurança, segurei sua mão, sorri e a convidei para sentar, colocando ao seu lado os pedaços de vida que salvei.

Não demorou pra chegar alguém que, não sei se só porque é Natal ou se verdadeiramente quis ajudar, me entregou uma sacola nova para acomodar aqueles pedaços da vida de Dona Berenice. Esse era o nome dela. Havia sido expulsa da casa da filha no dia de Natal. Mesmo desconhecendo os motivos, tentei lhe garantir que tudo iria ficar bem. Foi quando os olhos verdes dela me fitaram, esboçando o que parecia um sorriso.

Perguntei-lhe sobre o destino e ela respondeu que estava voltando para casa, no Amapá. Disse que sabe que sim, que tudo vai ficar bem. Que hoje chora, mas que o tempo resolve tudo e que um dia estará sorrindo. Havia eletricidade ali, onde o desejo de casa estremece o coração. Lembrei que em breve também estarei visitando a minha terra natal, que um dia deixei sem levar nada além de uma mala. Nada de sacolas que eu não pudesse carregar...

Indaguei afinal se Dona Berenice precisava de alguma coisa. Ela agradeceu e disse que eu já havia lhe dado o suficiente: atenção. Disse a ela o quanto merece muito mais que isso e lhe prometi que terá. Contei pra ela que aquele olhar era o olhar de quem tem como destino a felicidade. E nada vai tirar isso dela.

Lamentei ter que descer na próxima estação. Havia recebido um convite do meu irmão pra comer os restos de ontem do Natal, restos que Dona Berenice só quer esquecer, de tão indigestos. Enquanto eu saía do metrô, ela acenou com a mão sem sacolas, aproveitando a liberdade conquistada naquela viagem de volta pra casa.

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