A Ford e os liberais
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A Ford e os liberais

13 de janeiro de 2021
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Para quem acompanha o debate sobre política/conjuntura econômica tem sido um show de horrores as explicações propagadas pela mídia liberal sobre o encerramento das atividades da Ford em território brasileiro. É o discurso uníssono da eterna necessidade de reformas (sempre insuficientes), da baixa competitividade da indústria nacional decorrente do “custo Brasil”, do desequilíbrio fiscal, da dívida pública, da confiança... o de sempre!

As alegações concentram-se no chamado “lado da oferta”, isto é, os fatores que prejudicariam o investimento privado. A cobertura midiática tradicional, como de praxe, esconde o contraditório ao negar voz a economistas adeptos à realidade concreta, ao invés das fantasias liberais. Não seriam as próprias reformas e a condução da política econômica desde 2015 a raiz do problema, dados os seus efeitos deletérios sobre o “lado da demanda”?

Ainda assim, podemos examinar a questão a partir dos dois lados, enfatizando, contudo, os aspectos de demanda. Dois movimentos parecem decisivos para a saída da Ford: 1) a intensificação da concorrência; e 2) o empobrecimento do país. Vejamos.

Primeiro, a concorrência, caracterizada pela livre circulação de capitais, é atributo básico do capitalismo. Dada a natureza cíclica do sistema, é geralmente na crise que o capital se reinventa por meio dos movimentos de concentração e centralização, conhecidos desde o séc. XIX. Seria coincidência a recente fusão da Fiat-Chrysler e Peugeot-Citröen, dando origem à quarta maior fabricante de veículos do mundo, logo agora? Definitivamente, não.

É também próprio do capital migrar para mercados com maior capacidade tanto para realizar vendas como para minimizar custos, posto que o seu objetivo primordial é acumular mais capital, e não atender a quem quer que seja. Assim, sem apego. Portanto, a decisão da montadora americana Ford atende aos seus interesses frente a um mercado fortemente disputado e às condições impostas pela economia brasileira, cujo traço característico tem sido a austeridade recessiva – a política econômica do discurso único.

Isso nos leva ao segundo ponto.

De acordo com a Anfavea[2], o parque industrial brasileiro tem capacidade de produzir 5 milhões de veículos por ano. Porém, nos últimos cinco anos a produção anual oscilou entre 2 e 3 milhões de unidades. Atualmente, com utilização abaixo de 50%, se já não faz sentido realizar novos investimentos com plantas operando metade do potencial, agora há evidência da inviabilidade até de operar os investimentos que já foram realizados. Sabe-se que capital imobilizado sem utilização representa alto custo. Mas de onde vem tamanha ociosidade?

Resta pouca dúvida que vem das sucessivas retrações da economia brasileira, com o PIB ainda longe de recuperar o nível real de 2014. O resultado é um contingente crescente de desempregados, salários em queda e concentração de renda gritante. Além das consequências devastadoras sobre os indicadores sociais, o quadro econômico dos últimos anos resultou objetivamente na retração do mercado interno – sem que se pudesse contar com o mercado externo para compensar tal queda, pois mesmo antes da pandemia o crescimento do mundo já não empolgava, e agora é negativo.

País continental, anteriormente visto como mercado promissor, o Brasil segue preso a um regime de estagnação econômica que insiste em ser mantido por ideólogos disfarçados de técnicos, ainda que alguns mitos tenham sido desvelados durante esta crise pandêmica e que a realidade dos fatos tenha se imposto, como no caso da Ford.

Ao contrário do que os economistas-consultores de mercado afirmam, o problema não será resolvido pelo lado da oferta, com as reformas pró-capital. É preciso atacar o desemprego e recuperar o nível de renda para reativar a demanda efetiva. Uma reforma tributária seria bem-vinda para tal propósito se tivesse impacto redistributivo favorável às classes de menor renda, com maior propensão a consumir. Mesmo assim, somente um impulso fiscal via investimento público poderia engendrar a necessária recuperação econômica, pois já sabemos o caminho do capital privado à espera da última reforma liberal.

Breno Roos é Economista, Doutor pela UFRJ. Membro do Grupo de Economia Política do Desenvolvimento (GEPD) da UFRN.

[2] Associação Nacional dos Fabricantes de Veículos Automotores.

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