Elba, Neymar e eu
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Elba, Neymar e eu

7 de janeiro de 2021
Elba, Neymar e eu

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Todo mundo tem o direito de acreditar no que quiser. Afinal, estamos numa democracia. Mas, quando o seu sistema de crenças beira o conspiracionismo, flerta com a ignorância e passa a prejudicar outras pessoas. O que fazer?

Nos últimos dias, desde o final de 2020, as polêmicas festas de reveillon com aglomerações em plena pandemia, até a primeira semana deste ano, muito se discutiu sobre o comportamento de duas personalidades famosas, grandes artistas da música popular brasileira, como Elba Ramalho, ou do esporte, como o jogador Neymar. O que há em comum entre eles? Talvez a capacidade de falar ou entabular bobagens em um curto espaço de tempo, a de se render a discursos negacionistas ou conspiracionistas sobre a tragédia global do novo coronavírus, e a contribuição direta ou indireta que dão ao descaso de certo presidente com a contaminação e mortes de milhares de brasileiros.

No caso de Elba, chama a atenção uma mistura de ignorância com preconceito ideológico. Numa live feita com a presença de um padre, a cantora paraibana destilou uma pérola da sabedoria que faria corar de vermelho o rosto bochechudo do governador do Maranhão, Flávio Dino. Sem papas na língua, a diva do nordeste afirmou que a pandemia do coronavírus veio para destruir os cristãos, por serem eles “o calo dos comunistas”. #prontofalei como dizem na linguagem dos tuiteiros. Assim como no tempo de minha finada e saudosa avó, em Alagoas, dizia-se no tempo dela, em plena insurreição na chamada Intentona de 1935, que “comunistas comiam criancinhas”, agora a cantora Elba repete a lenda urbana, insinuando, nas entrelinhas, o que muito eleitor de Trump e Bolsonaro já disse tantas vezes: que o Sars-Cov 2 foi, na verdade, criado maquiavelicamente em laboratório pela China comunista, a fim de dominar o mundo e destruir a civilização cristã ocidental. Não bastasse a fala profética na neocatólica Elba, preocupada com a destruição do baluarte ético-cultural do cristianismo chancelado pelo Vaticano contra a suposta dominação marxista, a mesma cantora que se preocupa com os cristãos, talvez não tenha se preocupado com os cerca de 700 cristãos brasileiros que estariam aglomerados, sem máscaras, na sua casa, em Trancoso, na Bahia, ao menos até a chegada da polícia e a repercussão do fato nas mídias. Fato logo desmentido por ela, pois, afinal, a casa estava alugada e quem fez a besteira foi seu inquilino, a quem ela prometeu processar.

Além do perigo comunista que veio do Oriente, que lhe rendeu uma enxurrada de críticas nas redes sociais (com direito a pedido de desculpas virtual em seguida, naquela velha ladainha do “tiraram a frase do contexto de cunho espiritual". Ah, tá!), antes de Elba também teve sua vez, na “genialidade” de atitudes, o jogador brasileiro Neymar Jr, o craque do bolsonarismo. Como que dando um chega pra lá na pandemia, Neymar deu uma festa em sua mansão em Mangaratiba, para centenas de convidados, apesar de alegar ter feito teste antes para detectação de Covid-19, trancando-se num evento com uma centena de pessoas sem máscara, enquanto outras se aglomeravam numa festa paralela, também financiada pelo craque, contando com a participação de fãs e candidatos a subcelebridades. Não satisfeito com isso, onde um bocado de gente se preparava para abrir o ano contaminando outro bocado com o vírus, numa festa promovida por ele, o atleta brasileiro ainda teve tempo de gravar seus valiosos pés na calçada da fama, no Maracanã, além de tirar fotos com o senador das rachadinhas, filho 01 do presidente, Flávio Bolsonaro, e fazer uma videochamada com ele próprio, o capitão, o “mito”, Jair Bolsonaro, que em conversa animada com seu eleitor famoso falou de tudo, futebol, mulheres, carrões, menos sobre vacina ou como um presidente que diz que o país está “quebrado”, e que recusa a compra de seringas, pode, efetivamente, sair do campo das bravatas demagógicas e tirar o país do atoleiro que se encontra, com milhares de mortos pela Covid o fim do auxílio emergencial.

E em relação a mim nesse contexto todo? Começo por pregar o distanciamento do ídolo, ou mesmo minha identificação com ele, mas por via oblíqua; não por meio das virtudes do astro ou estrela que admiro e desejo copiar, mas sim por seus defeitos, pela possibilidade de que alguém muito famoso tem de fazer também “cagadas”, ou seja de humanizá-lo. Pessoas socialmente importantes ou famosas, muitas vezes cedem a teorias conspiracionistas, fazem festas irresponsáveis, desnecessárias e estapafúrdias em plena pandemia, seguem presidentes péssimos, ou porque reproduzem uma ignorância muito presente e difundida na sociedade, ou porque apresentam em maior ou menor grau algum problema ético e psicológico.

Nesse sentido, achei muito interessante de ler artigo publicado na coluna Tab, do site Uol, de autoria do jornalista Edison Vega, que colheu depoimentos de especialistas, como a bióloga Natália Pasternak e o psicólogo Ari Rehfeld, da PUC de São Paulo, sobre o perfil de pessoas que acreditam em teorias da conspiração. Geralmente são pessoas que não gostam de desenvolver raciocínios complicados ou desenvolver muitas possibilidades de pensamento. São fechadas em suas bolhas, tem um temperamento de eterna desconfiança e ressentimento e muitos se consideram “gênios incompreendidos”. Imagine então uma pessoa assim ficar famosa, sentir-se acolhida num grupo ou por grupos que a idolatram como artista ou profissional. Adicione uma rede social onde elas possam se comunicar com seus grupos como o whatsapp, facebook ou twitter, e você terá um líder com milhares de seguidores que irão reproduzir as mesmas crendices que você defende, como a terra plana, que coronavírus é gripezinha, que a melhor forma de se criar anticorpos para criar imunidade de rebanho é se aglomerando e se contaminando, ou que vacina transforma pessoas em jacarés.

Se eu, por um outro lado, procuro manter distância das conspirações e sair do estado de ignorância, buscando informação de verdade nos estudos da ciência, corro o risco de ficar sozinho ou com poucos ou nenhum seguidor ou seguidores nas redes, pois, além de não ser rico e famoso, sou apenas, para os conspiracionistas, um chato (ou até mesmo um ingênuo) a filosofar e escrever semanalmente em artigos de jornais sobre as crônicas do cotidiano regadas à citações de filósofos, juristas e sociólogos.

O problema é que pessoas como Neymar e Elba Ramalho são, pela sua condição de estrelas, formadores obrigatórios de opinião, são influenciadores. Seus atos, palavras e mesmo relatos do cotidiano se abrem à curiosidade e influenciam milhares de pessoas, que seguem seus ídolos e reproduzem suas formas de pensar e estilo de vida. Chegam a fomentar opções políticas. Lembro, ainda na época da Copa do Mundo de 2018, quando havia a discussão de quem era melhor na seleção, se Neymar ou Phillipe Coutinho, que as paixões nos grupos de whatsapp voltavam-se para aqueles amigos que eram fãs incondicionais do “garoto”. Na relação de fã, descobri até que ponto a fascinação por Neymar influenciava certas pessoas, quando testemunhei um amigo aderir ao bolsonarismo muito porque seu ídolo, jogador de futebol, tinha declarado na campanha que iria votar no capitão. Resultado, se desde que Pelé foi aconselhado por seu pai, Dondinho, a não misturar política com futebol, quando foi convidado a visitar o presidente Médici no Palácio do Planalto, em plena ditadura militar, creio que Neymar pai não deve ter feito o mesmo com o filho, e, ao contrário, deve ter achado bom negócio que Neymar Júnior ficasse tirando selfies com o presidente e sua prole, já que, ambos devem achar que a grande mídia faz muito estardalhaço com essa questão do vírus, assim como fez com a carreira do filho, astro incompreendido do futebol, que entre uma contusão e outra, jamais conseguiu ser eleito o maior jogador do mundo, apesar dos times galáticos e do salário milionário, e nem levou sua seleção nacional a conquistar o título de campeão do mundo no futebol.

No caso de Elba pesa o fato dela já ter sido um dos grandes nomes de nossa MPB. Sem gravar músicas de sucesso há anos, a Elba da minha juventude ainda era aquela dos cabelos cacheados, das belas pernas e do frenético gingado nos festivais e especiais musicais na televisão, enquanto cantava nas rádios que queria “banhos de cheiro e banhos de lua”, cujo coração fazia “tum tum” ou que estava “de volta ao aconchego”. O problema não é, na velhice, a famosa e sorridente cantora paraibana ter se convertido ao cristianismo. A questão é ter ou não envelhecido mal, ao menos nas ideias, a ponto de achar que comunismo ainda é um bicho papão, ou não dar a devida atenção ao que preocupa o mundo realmente, não uma ideologia, mas um vírus que já matou quase dois milhões de pessoas no planeta inteiro.

Na sua Königsberg natal, na antiga Prússia, onde viveu praticamente toda sua vida, o alemão Immanuel Kant, talvez um dos filósofos modernos mais estudados no mundo inteiro até hoje, dizia, nas suas aulas na universidade, no século XVIII, que uma coisa é a intuição, pré-concebida em nossas mentes, outra, é o entendimento, onde necessitamos da razão para compreender o mundo a nossa volta, assim como para termos um agir ético, devemos trabalhar com máximas universais, pois somente assim seria possível e moralmente aceitável a convivência entre as pessoas, de forma que seria racional considerar que se ajo de um jeito, outras pessoas também deveriam agir da mesma forma. Sua metafísica dos costumes era, então, baseada na suposta racionalidade na universalização de condutas: fazer o que é moralmente correto porque é razoável que todas as demais pessoas deveriam agir da mesma forma, e não o contrário.

O problema do negacionista e conspiracionista, daqueles que não dão à mínima para o bom senso ou não se preocupam com o óbvio, de que não se deve fazer aglomeração numa pandemia devastadora ou de se seguir líderes populistas que nada fazem para erguer um país em frangalhos, e, ao contrário, se não mentem sobre a realidade, vendem um mundo irreal de “gripezinhas”, é que não há entendimento, não há racionalidade no egoísmo cimentado pela fama. Se sou famoso, e posso acreditar no que eu quiser e fazer o que eu quero por ter muita riqueza pra isso, tanto faz seguir recomendações da ciência, quanto difundir asneiras compartilhadas em redes sociais ou lives. Não há universalização de condutas, porque, como vive em sua própria bolha, o negacionista ou terraplanista é incapaz de estabelecer máximas de um agir moral compatível para todos. É a lógica do: cada um faz o que lhe convier, sem ser obrigado a tomar vacina alguma, e vida que segue, como já disse certo presidente. Acredite no que quiser e não no que lhe recomendam estudar ou ler. Talvez seja o presidente de muitos Neymar, e muitas Elbas.

Perceber que pessoas famosas e bem sucedidas, com milhões de fãs e que influenciam milhares, também são falíveis, é reconhecer que nossos ídolos podem ser simples idiotas, ou ao menos ter seus momentos de idiotia. Afinal, assim como todo mundo pode acreditar no que quiser, qualquer um pode falar besteira, até mesmo eu, num momento de infelicidade intelectual. Entretanto, qual a diferença que eu teria com astros como Neymar ou Elba? A consciência do ridículo.

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