“Ao ignorar a ciência, gestores de hoje repetem os mesmos erros cometidos durante a gripe espanhola de 1918”, diz pesquisador
Natal, RN 19 de abr 2024

“Ao ignorar a ciência, gestores de hoje repetem os mesmos erros cometidos durante a gripe espanhola de 1918”, diz pesquisador

26 de fevereiro de 2021
“Ao ignorar a ciência, gestores de hoje repetem os mesmos erros cometidos durante a gripe espanhola de 1918”, diz pesquisador

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O atual esgotamento de leitos para pacientes com covid-19 no Rio Grande do Norte e agravamento da pandemia do novo coronavírus já estava previsto há, pelo menos, dois meses. A afirmação é do astrofísico da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), José Dias do Nascimento Júnior, também membro do Comitê Científico do Nordeste e responsável pelo modelo Mosaic-UFRN, utilizado na previsão das estatísticas de contaminação, internações e mortes pelo novo coronavírus nas capitais nordestinas. Dias afirma que a ventilação de uma segunda onda da doença foi prevista ainda em dezembro de 2020 e que os gestores deveriam ter usado esse tempo para adotar medidas mais severas e evitar o aumento do contágio.

“O que sugerimos, na época, foi que entre as duas ondas se aproveitasse a baixa pressão nas UTI’s para isolar as redes de contato da evolução comunitária e evitar a entrada das novas variantes do covid-19. Deveriam ter sido ações prioritárias. Quando sugerimos que estávamos no início de uma segunda onda, alguns especialistas negaram. Agora, ninguém mais tem dúvida de que a previsão estava certa”, critica.

O pesquisador também explica que antes mesmo do carnaval, por volta do dia 09 de fevereiro, a situação no estado já era ruim porque a transmissibilidade estava acima da média, com a ocupação de leitos subindo. Ele acrescenta que, por enquanto, não há como saber até quando a atual situação deve durar porque os dados atuais não refletem a realidade devido a um atraso na divulgação de dados que tem duração média de 20 dias, o que dificulta as projeções.

Gráfico traz as projeções da 1ª e 2ª onda da pandemia no RN I Imagem: cedida

"As aberturas representam saltos que ocorreram durante esse percurso entre a 1ª e a 2ª onda. Do lado direito temos a 2ª onda em dezembro, não somente mais importante que a 1ª em termos de média de casos, mas também de largura do pico. Nós crescemos e estamos no pior cenário de número de casos por dia e com o sistema totalmente aberto, sem restrições sociais, somente com a exigência do uso de máscara e essa questão de fechar bares e restaurantes mais cedo, que tem muito mais efeito psicológico porque as pessoas acabam se aglomerando de todo jeito, antes do horário de fechamento. É como no caso dos supermercados, se você fecha no sábado, vai todo mundo comprar na sexta. É preciso ter cuidado com essa questão, é preciso diminuir a circulação, porém com uma estratégia bem elaborada", explica Dias.

Gráfico com projeções de óbitos por covid para o RN I Imagem: cedida

O pesquisador também explica que a análise dos dados é complexa porque é preciso levar em conta o atraso que há na divulgação dos números, levando em conta o tempo entre a procura do paciente na unidade de saúde, a investigação e a confirmação da doença com a inserção das informações na base de dados. Ainda sobre as aberturas, o cientista avalia que o Rio Grande do Norte nunca esteve com Rt (taxa de transmissão da covid-19) abaixo de um por mais de 20 ou 30 dias, que indicaria as condições favoráveis de reabertura do comércio.

"As pessoas disseram que era um bom sinal para a abertura e não era. Teria que ser abaixo de um de forma contínua, por várias semanas, o que nunca ocorreu no RN. Desde o dia dois de dezembro temos uma média maior do que 10 óbitos por dia. Isso é terrível porque essas pessoas que chamo de "morríveis" estão sem ter o que fazer. As pessoas vão para as baladas e réveillons sem máscara, se contaminam e passam para os "morriveis", que não necessariamente são aqueles que foram pra festa, mas um primo, médico ou velhinho da família. Nós poderíamos ter acabado a 1ª onda em outubro, mas sem uma política severa de fiscalização e as aberturas sucessivas, cedendo às pressões, trouxe a pandemia para o estado atual", avalia José Dias.

Ritmo de vacinação

O Rio Grande do Norte tem uma população de mais de três milhões de habitantes (3.534.165) e desde o dia 19 de janeiro vacinou 88.701 pessoas. Levando em conta o preocupante cenário atual com a velocidade de vacinação no estado, seriam necessários mais de dois anos para garantir a cobertura da maioria da população.

“Observando a população do RN e quantas pessoas foram imunizadas até agora, de janeiro pra cá, percebe-se que seria necessário mais de dois anos para atingir uma imunidade coletiva, que é de 70% da população vacinada. O ritmo de transmissão atual é muito maior do que o de imunização e sem considerar as variantes que podem não ser bloqueadas por algumas das vacinas”, alerta José Dias.

O professor do departamento de Física da UFRN também alerta que o RN tem, atualmente, uma média móvel de infecção comparável aos piores dias de Junho de 2020, quando as medidas restritivas mais severas foram acionadas. Mas, apesar do maior número de casos, a segunda onda no RN tem sido menos letal, com um menor número de mortes. Mesmo assim, o número de mortes ainda é considerado alto pelo cientista.

A segunda onda teve mais casos, porém ela foi menos letal. No entanto, desde o dia 12 de dezembro há uma média de mais de dez óbitos diários no Rio Grande do Norte e sem perspectiva de baixa, por enquanto. Temos uma combinação desastrosa de testagem insuficiente, ineficiência no rastreio de casos e quebra nas redes de contágio. Também tivemos falha no isolamento sanitário que impedisse a chegada de novas cepas e uma indefinição do governo federal em relação à vacina, sem falar da irresponsabilidade de alguns gestores em sugerir tratamento precoce pra covid-19 sem nenhuma validade científica. Isso influência no comportamento coletivo, na falta de clareza e leva as pessoas a se arriscarem e a colocar em risco a vida de outras pessoas. Essa confirmação da 2ª onda em fevereiro mostra a força da ciência e, também, que os gestores de hoje estão cometendo os mesmos erros dos gestores do início do século XX, durante a gripe espanhola em 1918”, conclui José Dias.

Vítimas da Influenza na emergência de um hospital do Kansas, Estados Unidos, em 1918 I Foto: Associated Press/National Museum of Health
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