Quem me conhece sabe que meu livro bíblico preferido é o Eclesiastes. Literatura pura. Na verdade, bem mais que isso, quase um tratado filosófico e estoico que contrasta em muito com a grosseria implacável de livros como Levítico e Números, e não tem as histórias bizarras e sexualidade latente de Gênesis ou dos livros de Samuel e Reis. Eclesiastes é pareia com Shakespeare, o que não é pouca coisa. E às vezes até melhor. Daí ser quase uma blasfêmia reinventar o livro, mas, peço perdão aos leitores e leitoras, cristãos, agnósticos ou ateus, por fazê-lo.
Diz o Eclesiastes:
"Tudo tem o seu tempo determinado, e há tempo para todo o propósito debaixo do céu. Há tempo de nascer, e tempo de morrer; tempo de plantar, e tempo de arrancar o que se plantou;
Tempo de matar, e tempo de curar; tempo de derrubar, e tempo de edificar;
Tempo de chorar, e tempo de rir; tempo de prantear, e tempo de dançar" (3:1-4)
E eu poderia ousar e em pena pandemia, em pleno confinamento cada vez mais necessário, dizer aos quatro ventos que:
Há tempo para gritar, tempo para fazer silêncio.
Há um tempo para pensar no que se perdeu e há um tempo para não se pensar mais nisso, e sim em recomeçar e reconstruir. Um tempo para esquecer pessoas e um tempo para deixar que outras se façam presentes;
Há um tempo para se odiar o governante que sabota sua população e se recusa a comprar vacinas e há um tempo de esquecê-lo para dormir em paz e sonhar com a cura e com o fim dos pesadelos.
Há um tempo para explodir bancos, e um tempo para ler Saramago.
Há um tempo para ir para as ruas e tempo de de isolar em casa.
Há tempo para não se deixar abater pelo negacionismo, e lembrar que a Terra não é plana; tempo de não se deixar abater pelas fake news, pelo ódio construído com régua e compasso; e um tempo para assistir filmes e beber vinho e rir com os amigos.
Há um tempo de celebrar quem fez o país melhorar quando no poder; um tempo de criticar a passividade de quem poderia estar na luta contra a barbárie.
Há um tempo para beber cerveja e um tempo para se abster; Um tempo para ouvir Pixinguinha e um tempo para ouvir U2.
Há um tempo de dialogar com as pessoas queridas e mostrar empatia; E um tempo de se revoltar contra os vendilhões do templo e dos que predicam medicamentos sem eficácia contra vírus mortais.
Um tempo para assistir Netflix, um tempo para ouvir os filhos
Há um tempo para não enlouquecer, para não deixar que o caos caia sobre as nossas cabeças e um tempo para fazer pão e tapioca.
Há um tempo para pagar contas, para prestar contas, para fazer de conta que a realidade não nos afeta; e um tempo para os afetos, para o beijo na boca, para ouvir palavras doces.
Voltando ao texto bíblico, diz o versículo 22 no mesmo capítulo 3: "Assim tenho visto que não há coisa melhor do que alegrar-se o homem nas suas obras".
Sim, porque em meio ao caos, ao descaso governamental, à dor, ao negacionismo, às perdas, há, sim, o tempo de se alegrar. Nas obras feitas e nas que estão por vir.
Porque vamos sobreviver. Há um tempo também para a sobrevivência.