PL 5595/2020: o direito à educação como pretexto para aprofundar o genocídio
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PL 5595/2020: o direito à educação como pretexto para aprofundar o genocídio

15 de abril de 2021
PL 5595/2020: o direito à educação como pretexto para aprofundar o genocídio

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O PL 5595/2020, de autoria das deputadas federais Paula Belmonte (CIDADANIA/DF) e Adriana Ventura (NOVO/SP), assim como diversas proposições legislativas apresentadas em Câmaras Municipais e Assembleias Legislativas no contexto da pandemia de Covid-19, “dispõe sobre o reconhecimento da Educação Básica e de Ensino Superior, das redes pública e privada de ensino, em formato presencial, como serviços e atividades essenciais, inclusive durante enfrentamento de pandemia, de emergência e de calamidade pública”; e veda a suspensão das atividades educacionais em formato presencial, “salvo em situações excepcionais cujas restrições sejam fundamentadas em critérios técnicos e científicos devidamente comprovados”.

Trata-se de um projeto derivado do lobby das instituições de ensino privadas, mas derivado também da política genocida do governo Bolsonaro, que ignora a ciência, enfraquece o Sistema Único de Saúde, combate medidas necessárias à redução da transmissibilidade do coronavírus, dificulta a execução de um processo de vacinação massiva da população, nega a implementação de um auxílio emergencial capaz de garantir a subsistência das famílias em situação de vulnerabilidade, veta proposições que buscam assegurar o acesso dos estudantes a atividades pedagógicas não presenciais, promove a fome, o desespero e o genocídio.

Cabe destacar inicialmente que a educação não é um mero “serviço” ou uma simples “atividade”, mas um direito social, devidamente inscrito na Constituição de 1988. Nossa Carta Política explicita que o acesso ao ensino obrigatório e gratuito é direito público subjetivo, e que o não-oferecimento do ensino obrigatório pelo Poder Público, ou sua oferta irregular, importa responsabilidade da autoridade competente. Não há omissão, portanto, na legislação pátria, no que diz respeito à importância da educação para a consecução dos objetivos fundamentais da República, de modo que o PL 5595/2020 busca fundamentalmente impor o retorno às aulas presenciais em um momento de agravamento da crise sanitária, quando atingimos a triste marca de mais de 360 mil mortes em decorrência da Covid-19 e do descaso do governo Bolsonaro com a vida do povo brasileiro.

A Constituição Federal, ao assegurar o direito de greve, define que a legislação infraconstitucional definirá os serviços ou atividades essenciais e disporá sobre o atendimento das necessidades inadiáveis da comunidade. A Lei nº 7.783, de 28 de junho de 1989, por sua vez, regulamenta o exercício do direito de greve, definindo os seguintes serviços ou atividades como essenciais: tratamento e abastecimento de água; produção e distribuição de energia elétrica, gás e combustíveis; assistência médica e hospitalar; distribuição e comercialização de medicamentos e alimentos; funerários; transporte coletivo; captação e tratamento de esgoto e lixo; telecomunicações; guarda, uso e controle de substâncias radioativas, equipamentos e materiais nucleares; processamento de dados ligados a serviços essenciais; controle de tráfego aéreo e navegação aérea; compensação bancária; atividades médico-periciais relacionadas com o regime geral de previdência social e a assistência social; atividades médico-periciais relacionadas com a caracterização do impedimento físico, mental, intelectual ou sensorial da pessoa com deficiência, por meio da integração de equipes multiprofissionais e interdisciplinares, para fins de reconhecimento de direitos previstos em lei, em especial na Lei nº 13.146, de 6 de julho de 2015; outras prestações médico-periciais da carreira de Perito Médico Federal indispensáveis ao atendimento das necessidades inadiáveis da comunidade; e atividades portuárias.

A regulamentação do direito de greve, portanto, define como serviços ou atividades essenciais aquilo que é fundamental para assegurar o direito à vida, inclusive em situações extraordinárias como esta que vivenciamos, na qual tratar a educação presencial como “serviço essencial” significaria inverter a lógica da legislação e atentar contra a saúde pública e contra a vida.

Ademais, ao tornar a educação presencial um “serviço” ou uma “atividade” essencial, além de impor o retorno às aulas presenciais em um momento de agravamento da crise sanitária, o PL 5595/2020 termina por afetar o direito de greve dos trabalhadores em educação, o que é um efeito colateral extremamente deletério da referida proposição, ou mais precisamente um efeito premeditado.

A Lei nº 13.979, de 6 de fevereiro de 2020, que dispõe sobre as medidas para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus, autoriza a adoção de medidas como a restrição excepcional e temporária de entrada e saída do País e de locomoção interestadual e intermunicipal, afetando o direito de ir e vir em benefício da saúde pública e do direito à vida.

Caso o objetivo do PL 5595/2020 fosse de fato assegurar o direito à educação e a igualdade de oportunidades, o que estaria em debate não seria o retorno às aulas presenciais em um momento de agravamento da pandemia, mas sim a garantia do acesso de estudantes e profissionais da educação aos recursos tecnológicos necessários ao desenvolvimento de atividades pedagógicas não presenciais, previstas na Lei nº 14.040, de 18 de agosto de 2020, que estabelece normas educacionais excepcionais a serem adotadas durante o estado de calamidade pública, bem como na Resolução CNE/CP nº 2, de 10 de dezembro de 2020, que institui diretrizes nacionais orientadoras para a implementação dos dispositivos da Lei 14040/2020. A Lei 14040 e a referida resolução do CNE não são citadas na justificativa do PL 5595 nem no relatório da deputada federal Joice Hasselmann (PSL/SP).

Aquelas e aqueles que estão defendendo a educação presencial como “serviço” ou “atividade” essencial para impor o retorno às aulas presenciais muito provavelmente integram as mesmas trincheiras daquelas e daqueles que defendem a regulamentação da educação domiciliar, e muito provavelmente estarão, logo mais, defendendo a manutenção do Veto 10/2021, aposto ao Projeto de Lei nº 3.477 de 2020, que dispõe sobre a garantia de acesso à internet com fins educacionais a alunos e a professores da educação básica pública.

Outrossim, o PL 5595/2020, ao abranger também a educação superior, viola o disposto no art. 207 da Constituição Federal, que consagra a autonomia didático-científica, administrativa e de gestão financeira e patrimonial das universidades.

Imprescindível citar ainda o julgamento da ADI nº 6.341, impetrada pelo PDT, no qual o STF reafirmou a competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios em matéria de saúde pública. Conforme notícia publicada no endereço eletrônico do STF em 15/04/2020,

O Plenário do Supremo Tribunal Federal (STF), por unanimidade, confirmou o entendimento de que as medidas adotadas pelo Governo Federal na Medida Provisória (MP) 926/2020 para o enfrentamento do novo coronavírus não afastam a competência concorrente nem a tomada de providências normativas e administrativas pelos estados, pelo Distrito Federal e pelos municípios. A decisão foi tomada nesta quarta-feira (15), em sessão realizada por videoconferência, no referendo da medida cautelar deferida em março pelo ministro Marco Aurélio na Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 6341.

A maioria dos ministros aderiu à proposta do ministro Edson Fachin sobre a necessidade de que o artigo 3º da Lei 13.979/2020 também seja interpretado de acordo com a Constituição, a fim de deixar claro que a União pode legislar sobre o tema, mas que o exercício desta competência deve sempre resguardar a autonomia dos demais entes. No seu entendimento, a possibilidade do chefe do Executivo Federal definir por decreto a essencialidade dos serviços públicos, sem observância da autonomia dos entes locais, afrontaria o princípio da separação dos poderes. Ficaram vencidos, neste ponto, o relator e o ministro Dias Toffoli, que entenderam que a liminar, nos termos em que foi deferida, era suficiente.

O PL foi inicialmente encaminhado às Comissões de Educação (CE), Seguridade Social e Família (CSSF) e Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJC) da Câmara dos Deputados, mas uma das autoras do projeto apresentou o Requerimento 536/2021, reivindicando regime de tramitação de urgência, e o mencionado requerimento foi aprovado no Plenário da Câmara dos Deputados com 307 votos favoráveis e 131 votos contrários. Após a aprovação do regime de urgência, a deputada federal Joice Hasselmann (PSL/SP) foi designada relatora da matéria, e apresentou um substitutivo que mantém a essência do projeto original, embora estabeleça diretrizes para o retorno seguro às aulas presenciais.

Análise do Parecer Preliminar de Plenário n. 3 PLEN

O substitutivo apresentado pela deputada federal Joice Hasselmann (PSL/SP), em sintonia com a proposição original, além de reconhecer a educação básica e a educação superior, em formato presencial, como serviços e atividades essenciais, também estabelece diretrizes para o retorno seguro às aulas presenciais.

O texto continua vedando a suspensão das atividades educacionais em formato presencial, exceto nas hipóteses em que as condições sanitárias do Estado, do Distrito Federal ou do Município, aferidas com base em critérios técnicos e científicos devidamente publicizados, não o permitirem, uma vez que a mencionada vedação seria flagrantemente inconstitucional caso não levasse em consideração as condições sanitárias necessárias ao desenvolvimento de atividades educacionais presenciais.

Somente a educação básica pública engloba um universo de aproximadamente 40 milhões de estudantes e 4 milhões de trabalhadores em educação. Impor o retorno às aulas presenciais em um contexto de agravamento da pandemia significaria expor uma multidão ao risco de contágio e de morte, e conduzir o sistema de saúde e o sistema funerário ao colapso, tornando a tragédia brasileira ainda mais desumana.

O substitutivo dispõe que as diretrizes e as ações decorrentes da estratégia para o retorno às aulas presenciais em cada sistema de ensino serão adotadas a partir do exercício da pactuação entre os entes da federação, em regime de colaboração, e respeitarão as orientações das autoridades sanitárias brasileiras. Uma versão anterior do substitutivo considerava também as orientações da Organização Mundial de Saúde (OMS), o que foi suprimido.

Estabelece que a organização da estratégia, em cada esfera federativa, será feita com a participação dos órgãos responsáveis pela educação, saúde e assistência social. Uma versão anterior do substitutivo englobava a participação de representações de conselhos de educação, fóruns de educação, diretores de escola, professores, funcionários, alunos e respectivos pais ou responsáveis, o que também foi suprimido. A partir das diretrizes pactuadas, Estados e Municípios devem elaborar seus protocolos de retorno às aulas, que deverão ser observados pelas escolas na elaboração de seus próprios procedimentos.

Aponta ainda uma série de princípios e diretrizes que devem ser observados na estratégia para o retorno às aulas, como o estabelecimento de critérios epidemiológicos para a decisão sobre o funcionamento das escolas; prevenção ao contágio de estudantes, profissionais e familiares pelo novo coronavírus; igualdade e equidade de condições de acesso ao aprendizado; parâmetros de infraestrutura sanitária e disponibilização de equipamentos de higiene, higienização e proteção; parâmetros de distanciamento social e ações de prevenção que devem ser observados na abertura das escolas; avaliação diagnóstica de aprendizado e ações de recuperação, no âmbito das unidades escolares; critérios para a eventual validação de atividades não presenciais como atividades letivas; dentre outros.

O substitutivo verbaliza que os sistemas de ensino, a partir das informações e diretrizes do sistema de saúde acerca da situação epidemiológica, poderão adotar estratégias de: alternância de horários e rodízio de turmas, de forma a viabilizar o distanciamento físico; implementação de um sistema híbrido, com atividades pedagógicas presenciais e não presenciais; bem como de manutenção dos vínculos profissionais e liberação de atividade presencial aos profissionais da educação que integrem grupo de risco ou que residam com pessoas que integrem tais grupos, cabendo aos sistemas de ensino e às escolas a definição de formas pactuadas de trabalho.

Dispõe ainda que o calendário de retorno não necessariamente será unificado, prevendo a possibilidade de diferentes datas e ritmos para cada uma das escolas, tendo em consideração a situação epidemiológica de sua localidade.

Em caso de faltas dos estudantes cujos familiares integrem grupo de risco, o substitutivo aponta que os sistemas de ensino, com a efetiva participação de pais e profissionais da educação, adotarão ações pedagógicas e acompanharão os educandos nas atividades não presenciais.

Finalmente, o texto define como direito dos pais dos alunos de quatro a dezessete anos, ou de seus responsáveis, a opção excepcional pelo não comparecimento de seus filhos e pupilos às aulas enquanto durar o estado de calamidade pública reconhecido pela Organização Mundial de Saúde; ou se os educandos ou seus familiares integrarem grupo de risco, desde que devidamente comprovado. As escolas deverão manter contato com os educandos cujos pais optarem por seu não comparecimento e lhes proporcionarão atividades não presencias para acompanhamento dos conteúdos curriculares, enquanto durar o estado de calamidade pública reconhecido pela Organização Mundial de Saúde.

Percebe-se, portanto, que a barbaridade da proposição original conduziu a relatora da matéria a buscar formas de tornar a proposição menos antinômica e menos atentatória à saúde pública. Apesar do esforço da deputada Joice Hasselmann (PSL/SP), o seu substitutivo preserva a essência da proposição original: torna a educação presencial um “serviço” ou “atividade” essencial como forma de induzir, em um contexto de agravamento da crise sanitária, o retorno às aulas presenciais. Trata-se de uma nítida tentativa de constrangimento das medidas restritivas atotadas pelos entes subnacionais, derivada da postura beligerante, negacionista e sádica do governo Bolsonaro.

A mobilização contra a aprovação do PL 5595/2020 não deve levar em consideração apenas os possíveis efeitos práticos dos dispositivos propostos, mas também a disputa simbólica que está em curso na sociedade brasileira, inclusive nas Câmaras Municipais e Assembleias Legislativas, entre a cultura da vida e a cultura da morte.

O Brasil já contabiliza mais de 360 mil mortes em decorrência da Covid-19. A educação, que nas palavras do mestre Paulo Freire é um ato de amor, não pode ser transformada em uma indústria da morte. A escola, lócus privilegiado da construção coletiva do conhecimento e da liberdade, não pode ser transformada em um laboratório funesto, onde a tradicional chamada realizada para identificar a presença dos estudantes se tornará uma experiência traumática para a comunidade escolar, uma vez que muitas ausências, de trabalhadores em educação e estudantes, serão registradas não como ausências, mas como óbitos.

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