A raposinha de Leonardo
Natal, RN 20 de abr 2024

A raposinha de Leonardo

22 de maio de 2021
A raposinha de Leonardo

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No segundo semestre de 2020 fui incumbido pela direção da Fundação José Augusto de escrever e coordenar um edital voltado para a gastronomia tradicional do Rio Grande do Norte, este seria um entre os outros feitos com recursos advindos da recém-criada Lei Aldir Blanc. Uma missão um tanto desafiadora, confesso.

Primeiro, pelo simples fato de não se ter notícias de edital parecido no RN que tenha sido colocado na rua alguma vez, depois, e talvez por isso, houve algum ruído de resistência, porém nada que o impediu de ser publicado.

Segundo, pela responsabilidade que estava em minhas mãos, de tentar fazer com que aquela informação, aquele prêmio, realmente fosse acessado pelas pessoas de direito, as doceiras do Seridó, cozinheiras e cozinheiros do sertão ou do litoral. Creio que conseguimos, com uma rede de solidariedade quase invisível, feito sob suor, lágrimas e a muitas mãos, conseguimos.

Sobre essa minha breve odisseia (no sentido da caminhada, obviamente. Longe de mim querer ser Homero), falarei em uma ou mais crônicas em algum futuro breve. Como ainda não acabou todo o processo, sinto que as experiências ainda precisam decantar um pouco e amadurecer, e consequentemente ficarem no ponto certo de serem ingeridas.

Para dar um preâmbulo a quem não acompanhou, o Edital “Sabores, Saberes e Fazeres” premiou com R$5.000,00 quase 200 fazedores e, principalmente, fazedoras de gastronomia tradicional e artesanato potiguar, distribuídos nas 10 microrregiões do Rio Grande do Norte.

Muita coisa me tocou profundamente, algumas histórias incríveis, de resistência e preparações milenares. Recebi coisas que pulsava sangue lusitano, cheiro de mar, cheiro de terra, poeira sertaneja, o ranger da cadeira de balanço de Cascudo, veredas lamartinianas, dialetos tapuias, potiguaras, velas de jangada, mãos, almas e belezas vestidas d’África.

Com aquele material todo chegando até mim, senti que via o Rio Grande do Norte de cima, senti-me lume de buscapé correndo nas artérias e alvéolos das cozinhas e quintais de nosso povo, como se uma espécie de cometa me carregasse dentre séculos de história dessa esquina de continente (acho que essa é a sensação de uma epifania), sim, a cozinha de um povo não apenas conta a sua história, mas é seu arauto verdadeiro.

Depois de receber 400 e-mails com projetos e me certificar da habilitação destes, os enviei para banca examinadora, de nomes de peso da gastronomia e pesquisa em alimentação, Gabriela Sales, Warirson Santos e Adriana Lucena.

De repente uma notificação no meu celular. A banca, apaixonada como eu, havia me mandando uma mensagem emocionada, “Max, você tem que ler isso” e em seguida me mandaram um destaque do projeto de Leonardo (não vou pôr o segundo nome por questão de reserva, apesar de todas essas informações serem públicas) intitulado de “Raposinha Gorda”, que compartilho agora com vocês:

“A ‘Raposinha Gorda’ é um daqueles pratos que carrega nos sabores toda uma história, a memória de um modo de viver. Esta raposinha era a gorda porque era a que se comia no período das chuvas, quando tudo é verde, tudo brota, tudo é farto, e o meu avô até podia comprar carne de charque para comer todo dia com o feijão verdinho colhido no sítio, encravado numa vazante de rio, pertinho de Guanduba, em São Gonçalo do Amarante.

 Mas também existia a raposinha magra, feita sem carne, só com farinha e o feijão seco, guardado em latas reaproveitadas do querosene das lamparinas e lacradas com cera de abelha, para enfrentar o período difícil da estiagem. Este prato documenta um jeito de educar e de cuidar das pessoas praticado por gerações.

 Na segunda metade do século XX, mesmo numa região hoje muito próxima à capital do estado, o acesso aos serviços de saúde era praticamente impossível, por isso muitas pessoas (como meu avô) chegavam à velhice sem dentes e sem próteses dentárias. Assim, bater a carne no pilão, fazer uma paçoca, era uma forma de cuidar das pessoas que não tinham mais como mastigá-la. ”

Terminei a leitura disso eufórico e em seguida olhos de maré, me lembro de ter passado o dia me questionando o motivo daquele sentimento em mim mesmo. Em casa me lembrei. “ Capitãozinho!”, é claro! Como eu posso ter esquecido?

A mãe de Vovoinha fazia isso para ela, ela fez para minha mãe e para mim também, mas o nome era esse - “Capitãozinho” - e depois também escutei alguém falando de uma lembrança como “macaquinho”.

Bolinhos de feijão de corda com farinha branca, feitos de forma grosseira mesmo, com as mãos, como Leonardo bem disse acima, eles se vestiam diferente dependendo das ocasiões em que se apresentavam. Para mim, depois de prontos, passavam na “graxinha” da galinha e iam se avolumando no meu pratinho de plástico fosco até serem devorados por aquela criança alvoroçada e faminta.

Leonardo, se existe um gosto de casa de vó, se posso ser atrevido o suficiente de tentar sintetizar um gosto de saudades, se posso tentar explicar a quem nos lê o que é o sabor de uma infância arteira, de banho tomado e cabelos penteados para trás no asseio do pré almoço, esse sabor e imagem com certeza é de sua “ raposinha” ou do meu “Capitãozinho”.

Segue a receita, a brincadeira, o jogo afetivo da “Raposinha gorda” de Leonardo:

Ingredientes:
1kg de feijão verde
500g de carne de charque
500g de farinha de mandioca
01 cebola roxa picada bem fininha
01 tomate picado sem sementes
01 molho de coentro e cebolinha picados
05 dentes de alho pilados ou amassados
03 colheres de sopa de manteiga de garrafa
01 colher de sopa (rasa) de sal

Paçoca:

  1. Deixar a carne de charque de molho para dessalgar desde a véspera;
  2. Fritar
  3. Cortar em cubos;
  4. Pilar ou desfiar

Feijão:

  1. Cozinhar o feijão com sal a gosto
  2. Quando o feijão estiver cozido, escorra o caldo, acrescente nele duas colheres de sopa da mistura de coentro e cebolinha picados e reserve;
  3. Doure as Cebolas
  4. Acrescente o alho e siga mexendo até dourar;
  5. Acrescente o feijão cozido e refogue por 3 minutos
  6. Desligue o fogo, adicione o restante do cheiro verde e o tomate.

Raposinhas:

  1. Num prato, coloque uma concha de feijão por vez e sobre ele espalhe a paçoca;
  2. Com uma mão, vá misturando a paçoca com o feijão e amassando suavemente, de forma a fazer uma mistura modelável;
  3. Modele as raposinhas apertando suavemente, com uma das mãos, até chegar ao formato de um bolinho.

E seja feliz!

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