Talvez a maior demonstração da força da narrativa esteja no livro "As Mil e Uma Noites". Como quase todo mundo sabe, trata-se de uma coleção de autoria anônima de histórias e contos populares originários do Médio Oriente e do sul da Ásia compiladas em língua árabe a partir do século 9. No mundo moderno ocidental, a obra passou a ser amplamente conhecida a partir de uma tradução para o francês de 1704 por Antoine Galland, transformando-se num clássico da literatura mundial.
Também muita gente conhece a história em si que liga os muitos contos. Um rei, chamado Xariar, havia sido traído por sua primeira esposa, e a partir disso, para se vingar das mulheres em geral, começou a desposar uma noiva diferente todas as noites, mandando matá-las na manhã seguinte para evitar nova traição. Até que resolve noivar com Xerazade, que contudo, na noite de núpcias, começa a contar uma história. Como ambos dormem e a história não terminou, no dia seguinte Xariar resolve mantê-la viva para que termine a história. Ela então o faz e começa imediatamente outra, repetindo-se a noite anterior. Com esse expediente, de terminar uma história e iniciar outra na mesma hora, ela consegue durante as mil e uma noites escapar da morte, até que ela não aguenta mais e termina a última história. Mas aí o rei já se arrependeu de seu comportamento e, apaixonado por ela, desiste de executá-la.
É o símbolo da força da narrativa. Políticos conhecem bem essa força. Ela é capaz de mover multidões, de absorver o estado de espírito de um povo, de mudar o destino de um lugar, de vencer eleições.
A criação de uma narrativa possibilitou a ascensão de Hitler e do nazismo. Como possibilitou a gestão, digamos, trabalhista, de Getúlio Vargas. Políticos como Prestes, Brizola, Lula se impuseram e se impõem politicamente com a narrativa de suas vidas ou de suas ações.
Contudo, narrativas também servem a interesses provincianos e ambições menores. Quem assistiu a Odorico Paraguaçu em "O bem amado", e leu os autos de Ariano Suassuna sabe bem disso.
Em Natal, bela e problemática capital potiguar, podemos dizer sem medo de errar que o prefeito Álvaro Dias venceu a reeleição que disputava pela força de uma narrativa. Conseguiu, aproveitando a deixa do presidente Bolsonaro com sua Cloroquina, convencer a população natalense que o remédio para verme e piolho Ivermectina prevenia a infecção por Coronavírus, a despeito da opinião contrária da OMS, especialistas e da própria fabricante do medicamento.
Aliando a narrativa de um remédio salvador ao fato de que menos de 1% da população contrai o vírus e que 5% dos infectados vem a óbito, Álvaro gravitou no fato das pessoas contraírem a Covid de forma leve ou se curarem depois. "Graças a Invermectina", como mandava a narrativa de Álvaro, corroborada por médicos negacionistas e evidentemente bolsonaristas e uma ideologia política fortemente anti PT e que associou protocolos de segurança à "Esquerda".
A narrativa foi suficiente para se eleger. Depois Álvaro viu o sistema de saúde da capital entrar em colapso e os números mostrarem que Natal tinha mais óbitos percentuais em relação ao restante do Estado do que o percentual dos habitantes. Não foi o bastante para ele desistir da narrativa, ainda que já tivesse sido eleito.
Mas a situação ainda piorou. A Prefeitura de Natal desprezou a sugestão do Governo do Estado de guardar as vacinas para a segunda dose e preferiu embarcar na narrativa otimista-inconsequente do Ministério da Saúde de maneira que utilizou os estoques da segunda aplicação como primeira dose, o que serviu para criar a narrativa de que Natal estava "adiantando" a vacinação e baixando a idade da imunização, quando na verdade, depois se viu o engodo da narrativa com a falta de vacinas para segunda dose, desorganização com as faixas de idade e pessoas idosas durante horas em filas.
O curioso é que nem com todos esse problemas acontecendo, Álvaro muda as narrativas a que se apegou: a de que a Ivermectina previne Covid (o que além de não ter qualquer comprovação ainda é desmentido pelos altos índices de infectados em Natal), a que o Governo do Estado é inimigo dele e quer sabotar o comércio e a cadeia produtiva (o que o torna, na narrativa pessoal dele, o defensor dos empreendedores natalenses) e que o Sistema de Saúde da capital vai aguentar o tranco sem as medidas de restrições que ele, Álvaro, sabota sistematicamente.
Em suma, assim como Xerazade na antiga Arábia, Álvaro todo dia tem que inventar uma nova história para sustentar a anterior e não deixar a narrativa morrer. Mas, nas mil e uma noites da literatura oriental, a narrativa de Xerazade salvou a vida dela e das esposas que viriam depois. Já as histórias dia a dia de Álvaro para sustentar sua narrativa tem potencial de causar mortes.