Cabeça de galo para curar essa ressaca
Natal, RN 25 de abr 2024

Cabeça de galo para curar essa ressaca

8 de maio de 2021
Cabeça de galo para curar essa ressaca

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Me pego refletindo nessas tardes de clima inconcluso de Natal, hora chove e 10 minutos depois um sol escaldante aparece para me lembrar de que estou vivo, um céu azul piscina que grita na janela do meu apartamento e permite que a planta solitária que Bruna trouxe do jardim da mãe dela respire, ao menos ela respira.

Sempre escrevo escutando alguma coisa, agora o meu streaming me trouxe a lembrança que cresce um musgo bonito na parede da garagem, é Violeta Parra cantando “Volver a los 17” no pé de meu ouvido. O telefone toca, tenho medo, é mais alguma noticia mórbida, desligo, respiro, ensaio lágrimas, sinto raiva novamente, mas Violeta me acalenta e me diz com voz materna que o amor “Nos aleja dulcemente de rencores y violências”.

Uma vez meu tio Ângelo me disse que sol é bom para ressaca. Será o calor bom para ressaca? Talvez por isso os caldos acompanhem os porres e as ressacas de domingo. Será? Talvez. A primeira vez que escutei falar sobre esse negócio chamado “cabeça de galo”, eu era criança, percebi que era algum caldo, mas fiquei com asco pensando na cabeça do pobre do galo boiando em água rala, acompanhado de um punhado de cheiro verde. Ledo engano (gosto dessa expressão, acho que faz um som bonito quando sai da boca, “ledo engano”).

Na gastronomia, muitos falam do álcool que acompanham jantares, almoços, petiscos, reuniões, deliberações, sobre como o álcool já fez guerras de todas as estirpes iniciarem e com a mesma intensidade as encerraram. Como pode um líquido travestido de todas as cores e texturas possíveis ao redor do mundo ser tão intenso e poderoso, benéfico e maléfico, unir e destruir com uma facilidade pouco vista?

Mas poucos se dão ao trabalho de falar da ressaca, talvez por ser uma pedra no sapato de qualquer um que recebe esse recado do “Deus excesso”, mas ela está sempre ali, a espreita, pronta para deixar a gente na cama ou no banheiro, pronta para mostrar que aquela energia toda do álcool tem um preço, e esse preço é doloroso, como quase todos os karmas da vida.

E no instante, quando alguém surge com uma cabeça-de-galo, como um xamã dos cozidos, como uma curandeira, como um rezadeira, a vida parece acontecer novamente. Aquele líquido dourado, simples e perfumado, descendo pelo esôfago como pluma até o estômago sofrido dos exageros, parece ser um abraço no âmago do espirito dos que sofrem.

Jardelino Lucena, que Deus o tenha, escreveu o livro “Sopa é Sopa” com dezenas de receitas de sopas de tudo que você possa imaginar, quase um “cozinheiro Imperial” das sopas. No exemplar que tenho aqui, ele chama a nossa personagem de “Crista-de-galo” e inicia com uma citação de Souto Maior “Este Prato também é conhecido por cabeça-de-galo, caldo da caridade e Levanta defunto, é aconselhado a pessoas anêmicas, gripadas e aos bêbados...”

É uma preparação tão simples, tão única e tão delicada ao mesmo tempo, que chego a me emocionar. Às vezes as dores podem ser resolvidas com medidas tão simples, com um pouco de empatia e vontade, na maioria das vezes o gesto de cuidar e de amar é tão poderoso, mas parece ser cada vez mais escasso como esses caldinhos, tão triviais, porém difíceis de achar, mesmo a gente sabendo como se faz, no fundo todos nós sabemos, fingimos que não sabemos. Mas sabemos. E a dureza, a anemia da alma, mora aí.

Ligo a televisão enquanto cozinho para a minha página profissional, me concentro e de repente a voz de alguém vinda de Brasília me causa arrepios, e creiam, não são de felicidades e nem de medo, é de impotência, de ver tanto absurdo e me sentir travado em um redemoinho psicodélico de relativização.

Até mesmo os mortos já estão cansados, fazem montes no corredor de minha mente, lutos em todas as ruas de um planeta irreal chamado Brasil. O cheiro dos tempos é rapidamente desviado com a dança do carpinteiro da deputada, do álcool nas calçadas que descem pelas gargantas irresponsáveis e por mais um reality qualquer, enquanto a nossa reality mais parece um quadro de Salvador Dalí.

Com o poder do autoengano, que parece ser a bola da vez, para uma nação anêmica e gripada, para que a esperança perversa do termo “levanta-defunto” se faça inocente, pare que saiamos dessa dança ébria sem graça e para ver se reagimos a essa ressaca maldita, nada mais justo do que a receita de cabeça-de-galo do querido Professor Jardelino de Lucena.

Você vai precisar de 1 litro de água, 1 cebola em rodelas finas, 4 dentes de alho, 1 molho de coentro, 4 colheres de sopa de farinha de mandioca peneirada, 1 colher de sopa de manteiga, 4 ovos, sal e pimenta a gosto.

Leve a fervura a água, a cebola, o alho e o coentro picados, em seguida a manteiga e o sal. Aos poucos vá juntando a farinha e mexendo para não ficar “emboloado”. Adicione os ovos por inteiro para que cozinhem no estilo pochê ou escalfado, depois a pimenta.

Se você não ficar ao menos mais animado e corado depois disso, talvez o cotidiano nacional tenha realmente feito um estrago pesado em você, como faz em mim.

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